Capítulo 6 - Memórias

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Elisa

Minha casa é perto da escola, mas hoje mãe iria me dar uma carona. Quando dei alguns passos para fora de casa, para entrar no carro, ganhei uma companhia indesejada.

- Me desculpa! Eu não sabia que viria para cá. Eu nunca sai da sua casa - disse Caio, o fantasma que agora vive na minha sala de televisão.

- Eu já imaginava que isso aconteceria. Eu sempre vejo fantasmas perto de onde suas pendências terrestres devem ser finalizadas. Quando me aproximo dos lugares, os fantasmas me acompanham.

- Como assim, pendência? - disse Caio, com uma expressão que indicava alto nível de desentendimento.

- Todo fantasma vem com uma pendência. Por exemplo, meus primeiros fantasmas apareceram no meu quarto, pois eles tinham que me informar sobre a morte de meus pais, que estavam no acidente de barco com eles.

- Você é adotada?

- Sim. Meus pais são, na verdade meus tios, mas todo mundo já sabe. Porém, o que nem todos sabem é que eu vejo gente morta, então nada de falar comigo na frente das pessoas. - Eu disse isso cochichando.

- Claro... Mas qual é minha "missão"? Eu vou embora depois de cumpri-la? Eu não quero passar a eternidade com você. Sem ofensas.

- Eu espero, realmente, que sim. Geralmente é algo que o morto tem que dizer, mesmo não querendo. Pode ser a coisa mais inimaginável, que você não sabia que era importante. A pendência não depende de você, e sim do futuro dos outros.

- Com quem você tá conversando filha? - Minha mãe olhou pelo retrovisor central.
- Relaxa mãe, tô repassando umas matérias aqui na cabeça.
- No primeiro dia de aula?
- É... Sabe como é. - A desculpa parece ter funcionado.

- Então estamos perdidos, porque não tenho a menor ideia do que ela possa ser. - Ele disse.

- Não tem algo que você queira falar pra alguém, algum parente, amigo, namorada, namorado...

- Não. No dia em que eu ia morrer, eu meio que me despedi de todos.

- Espera aí! Você já sabia que ia morrer?! - Me contive.

- Saber, não. Mas fazia ideia. Eu tinha arranjado uns rolos perigosos cons uns donos de uma empresa, que queriam comprar minha casa para aumentar o espaço da fábrica. Eu não sei o que se fabricavam lá, mas, há um ano ou dois, foi encontrado um homem morto que tinha um envolvimento com os empresários. Todos da região sabiam que os donos eram encrencas, mas eu não podia sair da casa que meu pai contruiu. Então, no dia eles me ligaram, querendo conversar e disseram que se eu não aparecesse...

- Tá! Eu entendi. Não precisa terminar. -
- Desculpa. Eu não sabia que você era sensível.
- Eu? Sensível? Só não preciso saber dos detalhes. Sua mão decepada já é imagem gráfica demais. Agora vamos para a escola. Hoje é o meu primeiro dia de aula e não quero atrair nenhuma atenção indesejada.

***

A escola era enorme. Diferente dos últimos anos que eu fui educada em casa. Ver aquela estrutura grande com colunas e até uma pequena fonte me deixou animada. Tinha até os escaninhos, bancos e com cadeados. Cada aluno tinha personalizado o seu.

- Ai minha Nossa Senhora! O que eu faço? Eu nunca tinha ido à uma escola, a não ser na formatura do meu irmão.
- Sério? E você não estava querendo que as pessoas não pensassem que você é esquisita?
- Ninguém me notou. - Coloquei meu headphone. Eles vão pensar que estou cantando, ou sei lá. - Durante muito tempo eu estudei em casa e não tive amigos. Quero um começo diferente. - meu rosto começou a ruborizar.

- Nossa, isso é triste.

Eu levantei uma sobrancelha e cruzei os braços, mostrando que eu não gostei daquele comentário.

Ele limpou a garganta. - Foi mal. Vamos, eu te ajudo. Primeiro vamos procurar algum responsável para te ajudar a pegar seus materiais e seu armário e te dar seus horários.

O fantasma estava me ajudando. Grande dia.

***

Caio me disse com quem eu devia falar, o que falar e como achar a sala.

- Obrigada - respondi aos favores, envergonhada.

- Agora você me deve um favor - o fantasma ficou com uma cara pensativa.

- E te ajudar a sair daqui já não é o bastante? Aliás, eu deveria ter cobrar mais vinte favores. A liberdade tem um valor inestimável.

- Contando que não seja algo difícil.

- Contanto que sua pendência não seja falar algo para a Beyoncé...

Começamos a rir.

- Como é sua família? Digo você têm irmãos? Um cachorro? - Falei.

Ele ficou instantaneamente sério, o que me fez me arrepender de ter perguntado, mas eu não voltei atrás.

- Acho que você quis dizer tinha. Minha família é pequena e não é muito unida. Tenho só um irmão, Lucas. E eu tenho uma tartaruga, que ganhei do meu padrinho com cinco anos, que por sinal é o único do mundo que se importa comigo. Ah, e não tenho pai.

- O que aconteceu com ele?

- Não sei e nem quero saber. Só sei que não é o mesmo que o do meu irmão. Meu irmão é loiro e eu tenho cabelos pretos, ele é grande, tipo jogador de futebol, e eu sou mais alto, mesmo tendo um ano a menos. - disse ele rapidamente, como se não gostasse do assunto.

- Que legal, então. E ele também é bonito? - toci logo depois de falar, tentando disfarçar meu erro. - Ele é bonito, quer dizer, se parece com você ou sua mãe?
- Sei lá. Nós dois puxamos minha mãe no rosto.
Percebi que ele realmente não queria falar sobre aquilo, então mudei o rumo da conversa.
- Eu não sei se te perguntei, mas quantos anos você têm? Eu tenho dezoito.
- Eu também tenho dezoito. Ia terminar o colégio esse ano...

Eu estava vacilando muito - E em que escola você iria estudar?

- Eu não sei. Eu começaria em uma nova depois de ter mudado de casa, porque minha mãe que iria vender a nossa casa para os donos da empresa que eu falei, mesmo eu recusando sair de lá. Me mudaria na tarde em que eu sofri o pequeno acidente que me trouxe até aqui - a expressão de seu rosto ficou "fria".

O sinal para a aula tocou.

- Olha só, me desculpe, eu não sabia que a sua vida era assim, se não eu não teria perguntado. Eu tenho que ir pra aula. Você vai ficar aqui conhecendo a escola ou vai assistir a aula comigo?

- Eu vou ver a aula, para te ajudar, caso você precise. - Eu não tinha como recusar.

As aulas foram legais. Os professores gostaram de mim, já que eu sabia muito de suas matérias, pois levava meus estudos a sério. Mas não consegui nenhum amigo. Por enquanto.

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