Quinta-feira calorosa na Lapa, no Rio de Janeiro. Boteco do Tião, aquele mesmo pé-sujo, de mesas invadindo a calçada, máquina de caraoquê no fundo, tevê de trinta polegadas presa na parede, passando a novela das nove. Caio estava saboreando um delicioso frango a passarinho com seus amigos – alguns de longa data, outros mais recentes — quando não se sabe donde a pergunta surgiu. Foi entre um gole de Coca-Cola e um pedaço de frango a passarinho que respondeu:
—O amor pode ser complicado, mas acho que não podemos dizer que não existe...
—Como assim, complicado? - Perguntou Max, um de seus melhores amigos.
—...Na verdade, não é o amor que é complicado. Complicado são as pessoas — completou seu raciocínio com um sorriso amarelo, abocanhando mais um pedaço de frango a passarinho.
O grupo riu, concordou, filosofou por um tempo e no final preferiu ficar conversando, bebendo e comendo. Era incrível como uma simples mudança de palavras tinha mudado todo o rumo da conversa. Mais incrível ainda foi usar esse conhecimento da Terra Prime – como Caio gostava de chamar a sua linha temporal original — para facilitar um pouco seu trabalho. Não conseguiu ganhar nenhum milhão, mas ajudou, e muito, a relação no trabalho e frilas que fazia por fora.
Contas pagas, despedidas calorosas. Max, ao dar tchau, dá um soquinho no braço de Caio.
—Ai!
—Tem certeza que não quer uma carona? Tem espaço no carro. — falou, baixinho.
—Tô de boa. Tá tranquilo, tá favorável. – e ambos riram.
As risadas foram interrompidas pela buzina do carro do Pedro, que pelo visto estava com pressa. Apesar de tudo, Max teve tempo de dar um abraço seguido de um "te cuida".
Mal o carro deles desapareceu de vista e Caio já atravessava a rua, rumo ao ponto de táxi. Essa parte estava resolvida. Havia feito anos atrás uma lista mental de situações que achava importante consertar nessa nova linha temporal. Felizmente o carro com o motorista que mais parecia um Papai Noel estava livre, em minutos o rapaz seguia rumo ao seu lar.
Dessa vez não ia usar o iPod caso tocasse alguma música desagradável ou ele puxasse algum assunto. Até porque dessa vez, Caio sabia exatamente o que ia acontecer e o que deveria fazer. E como um relógio suíço o locutor anunciava a tradução do dia. E como da outra vez, era Careless Whisper – Sussurro Descuidado.
Dessa vez, prestou mais atenção à letra e a tradução. Achou graça na correria do locutor-tradutor que era obrigado a acompanhar a letra, mesmo quando a versão traduzida de uma frase ou outra saia bem maior do que na versão original. Momentos depois do final da tradução, o taxista dirigiu a palavra a Caio:
—Eu não imaginava que essa música tinha uma letra tão bonita e triste.
—Verdade...
— Imagina: o cara que trai a mulher que gostava e depois se arrepende...
— Homem — interrompe Caio.
— Como assim?
E explicou novamente a falácia sobre a música ter uma letra dúbia e que anos depois George Michael admitira que fez a letra da música pensando num homem que traiu o companheiro. E foi divertido ver a mesma cara de espanto do taxista como da outra vez.
— Mas é triste. Se ele traiu é porque o amor acabou, né?
— É. Acontece.
— Mas e se fosse com o senhor, como reagiria?
Caio olhou pelo retrovisor, encarando o taxista, que esperava a resposta. Pensou por alguns instantes e respondeu:
—Depende. Se eu fosse o traído, ia seguir em frente. Virar a página. Se eu fosse o traidor e tivesse consciência disso, ia me esforçar para não fazer isso com ninguém. Nunca mais.
— Pois é... — respondeu o taxista.
— Não incomodou o senhor a letra falar sobre um relacionamento gay?
— Olha rapaz, eu estou com cinquenta e oito anos... eu já vi muita coisa nessa vida. Ou a gente se adapta ou fica pra trás.
Aquela reposta surpreendeu Caio. O resto do trajeto seguiu tranquilamente em silêncio. Ao descer na porta do prédio onde morava, ainda ouviu do taxista:
— Olha aqui o meu cartão. Se precisar de uma corrida, é só ligar, filhote.
— Obrigado, ligo sim. Uma boa noite e boas corridas.
Caio entrava pela portaria ostentando um sorriso. Mas diferente da outra vez, sentia-se em paz consigo mesmo. E, como da outra vez, o taxista ainda ficou alguns momentos olhando para o rapaz.
"Quem foi que disse que spoilers são prejudicais? " – Pensou. Até que, no elevador o jovem se deu conta: o taxista lhe chamou de filhote? Quando parou para olhar o cartão que lhe foi entregue, deparou com uma arte tenebrosa, digna de algum sobrinho onde estava escrito "ARTURO – TAXISTA" com letras grandes e douradas, seguido dos telefones de contato e uma grande pata de cinco dedos marrom no canto superior esquerdo.
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Caio não acredita no amor
General FictionDepois de uma desilusão amorosa, Caio decidiu não mais mais acreditar em amor. O que ele não imaginava eram as consequências dessa atitude.