O ponteiro do relógio arrastava-se devagar e Caio lutava contra o sono e contra o turbilhão que estava em sua mente. Já havia bebido as seis latas de energético e o cappuccino triplo frio junto com os pães de queijo. Mesmo assim, não conseguia se concentrar em seu trabalho. Mal deu onze e vinte e resolveu descer para almoçar.
Ao sair do prédio onde trabalhava, Caio viu um dos seguranças brigando com um velho senhor, cego, que estava sentado ao lado da entrada sob um pedaço de papelão. Ao lado do velho, alguns poucos pertences. Um cabo de vassoura, que provavelmente lhe servia de bengala, uma velha bolsa de couro surrado, junto com uma latinha onde as pessoas depositavam alguns trocados ao lado de um cartaz, também de papelão, onde alguém escrevera um pedido de ajuda com caneta bic azul.
Ele já o tinha visto algumas vezes pelo centro, sempre pedindo um trocado para comer alguma coisa. Usava o mesmo terno preto surrado, com alguns remendos. No pé direito um tênis surrado, no esquerdo um chinelo com a alça remendada. Curiosamente, os óculos escuros pareciam novos. Presente de um anônimo que se penalizou de sua condição. A barba branca, desgrenhada, gerava um contraste com a sua calvície, mas que de certa maneira harmonizava com as rugas em seu rosto sofrido. O jovem segurança parecia sem paciência com aquele senhor, que recolhia as suas coisas. Não era a primeira vez que ele pairava por lá praticando sua mendicância. Caio pensou em seguir adiante, deu três passos na direção contrária. Parou. Respirou fundo e foi na direção dos dois.
— Meu senhor, eu já falei que não pode ficar aqui. Recolhe suas coisas e cai fora!! – Falava firmemente o segurança. Não chegando a gritar, mas de uma maneira bastante intimidadora. O velho senhor, nervoso, nada dizia. Sem querer, havia derrubado a sua lata, espalhando as poucas moedas que tinha. Irritando um pouco mais o segurança.
— Com licença. – aproximou-se Caio – Amigo, você não vê que ele já está indo embora?
O segurança se vira para o jovem com cara de poucos amigos.
— E o que você tem a ver com isso?
— Nada. Justamente por isso. Olha, eu imagino que o seu dia não esteja sendo bom. Acredite, o meu também não está. Mas descontar nele não vai melhorar. – E abaixou-se, ajudando a recolher as moedas e coloca-las na lata.
— Eu assumo daqui. – disse o jovem. O segurança, aparentemente constrangido, vendo que o problema seria resolvido, voltou para o seu posto na entrada do prédio.
Caio ajudou pacientemente o senhor a se levantar. O velho disse um "muito obrigado", baixinho.
— De nada. Pronto, aqui estão as suas coisas. Ás vezes a gente acorda do lado ruim da cama.
— Qual é o seu nome, jovem? – perguntou o velho.
— Caio.
— Me chamo Moura. Você me faria um favor, Caio?
— Se estiver ao meu alcance, sim.
— Sabe me dizer se, com as moedas que ganhei hoje, consigo uma refeição decente por aqui?
Os trocados na lata mal passavam de três reais.
— Não. – disse Caio, sem pestanejar. Uma expressão de tristeza pairou sobre a face de Moura.
— Mas, para a sua sorte, eu conheço um PF show de bola aqui perto. E, como eu detesto almoçar sozinho, estou lhe convidando para me acompanhar. E não aceito um não como resposta!
. . .
O local era uma pensão simples mas aconchegante. Uma comida com gostinho caseiro e preço honesto. Logo os dois estavam a uma mesa, servindo-se de feijão, arroz, farofa. Caio pediu um bife à milanesa com fritas, Moura pediu um bife acebolado com salada.
— Muito obrigado por sua generosidade, rapaz.
— Eu fiz o que achava certo. Meu dia hoje começou complicado, mas sei lá. Não achei justo o jeito que o segurança lhe tratou. Fora isso, eu já vi o senhor diversas vezes aqui pelo centro e sequer lhe dei um trocado. Achei que já era hora de me redimir.
Foi então que o jovem reparou que Moura usava uma pulseira dourada na mão direita com alguns penduricalhos. Entre eles, diversas estrelas, uma versão da Terra, duas cornucópias e uma pequena roda.
— O senhor não tem medo de levarem essa pulseira? Ela parece ter um valor estimativo muito alto. – Comentou.
— Ah, não. - respondeu o senhor, sorrindo. – Eu sei me cuidar. Mas e você, rapaz? Não preciso ser cego para perceber que alguma coisa o aflige.
— Por que o senhor diz isso?
— Você comentou que o seu dia não estava bom, quando falou com o segurança. Problemas de trabalho?
— Mais ou menos... – disfarçou o jovem.
— Então são problemas de coração? – concluiu Moura. — Quem é a garota?
Caio ficou sem graça em responder, mas o silêncio não impediu que o velho senhor de continuar.
— Então deve ser um rapaz... - aquela afirmação pegou Caio de surpresa, justamente por vir de um senhor como aquele. Como que adivinhando a reação do jovem, ainda completou:
— Eu já vi muitas coisas na vida, rapaz. Não sou melhor do que ninguém pra te julgar.
— Sabe quando você acha que consertou um problema e percebe que criou outro pior ainda? Tipo, você conseguiu desfazer uma coisa que te fez muito mal, mas essa coisa volta agora e periga piorar muito as coisas?
— Eu acho que sei o que quer dizer.
— E o pior, esse problema voltando é encrenca na certa! Uma solução seria fugir. Até pensei nisso, mas eu tô cansado de fugir. Fora que eu me sinto atrapalhando o destino das pessoas envolvidas nesse problema todo.
— Vocês, humanos, enxergam o destino como uma tapeçaria, com os seus fios entrelaçados harmoniosamente quando, na verdade, o ideal seria compará-lo às raízes de uma árvore. Uma não, diversas. – respondeu Moura, calmamente.
— Não é bem assim, 'seu' Moura. É que o conceito de tapeçaria tem toda uma poesia que... - Caio parou abruptamente seu raciocínio. - Espera aí. "Vocês, humanos?" – em sua mente era como se o rapaz estivesse sob uma mesa cheia de papéis, procurando freneticamente por pistas. Tudo bem que o seu palácio da memória não era tão arrumado, mas estava tudo lá. Estrelas, roda, cajado, Terra, cornucópias, cegueira! Até mesmo o nome!! MOURA! Como ele pode ser tão cego!
— Se te serve de consolo, você não demorou tanto assim para deduzir o óbvio. – disse o senhor cego, num largo sorriso.
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Caio não acredita no amor
BeletrieDepois de uma desilusão amorosa, Caio decidiu não mais mais acreditar em amor. O que ele não imaginava eram as consequências dessa atitude.