XVII

58 10 4
                                    

Para mim, o Halloween é a melhor festa do mundo. Melhor até que o Natal. Posso usar fantasia. Posso andar por aí como qualquer outra criança fantasiada e ninguém me acha estranho. Ninguém olha para mim duas vezes. Ninguém me nota. Ninguém me reconhece.
Eu gostaria que todos os dias fossem Halloween. Poderíamos ficar fantasiados o tempo todo. Então andaríamos por aí e conheceríamos as pessoas antes de saber como elas são sem fantasia.
Quando eu era pequeno, usava uma coroa de princesa aonde quer que fosse. No parquinho, no supermercado, na hora de buscar a Gemma na escola. Acho que o usei por alguns anos, mas tive que parar quando algumas pessoas começaram a me olhar atravessado. Tinha uns sete anos, acho. E depois disso não encontramos mais a caroa. A mamãe procurou em tudo que era lugar. Ela achava que provavelmente ela tinha ido parar no sótão da vovó, e pretendia continuar procurando, mas aí eu já estava acostumado a não usá-la.
Tenho fotos com todas as minhas fantasias de Halloween. A primeira foi de abóbora. A segunda, de Tigrão. A terceira foi de Peter Pan (o papai se vestiu de Capitão Gancho). Na quarta vez me vesti de Capitão Gancho (o papai estava de Peter Pan). Na quinta fui uma princesa. A sexta fantasia foi de Mickey. A sétima foi de Minnie. A oitava foi de palhaço. No nono Halloween usei uma máscara como a do filme Pânico, suja com sangue falso.
Este ano vou me vestir de Elsa. Minha mãe procurou a fantasia em todos os lugares, mas não encontrou nenhuma do meu tamanho, então comprou uma roupa de Cinderela e então fez magas mais longas. Também fez algumas coisas para ela parecer ''fria''. Enfim, ficou muito realista. A mamãe é boa com fantasias.
Na aula de orientação todos conversamos sobre nossas fantasias de Halloween. Niall vai ser Harry, de Harry Potter. Louis, olaf. Megan ia se vestir de Anna, o que era uma coincidência estranha. Acho que ela não gostou de saber que eu ia me fantasiar de Elsa.
Na manhã do Halloween, por algum motivo a Gemma teve um grande acesso de choro. Ela costumava ser muito calma e controlada, mas esse ano tem tido algumas explosões desse tipo. O papai estava atrasado para o trabalho e ficou meio que dizendo: "Gemma, vamos logo! Vamos logo!"
Normalmente o papai é superpaciente, mas não quando pode se atrasar para o trabalho, e seus gritos só deixaram Via ainda mais estressada. Ela começou a gritar mais alto, então a mamãe disse ao papai que me levasse para a escola e que ela cuidaria da Gemma. Mamãe me deu um beijo de despedida rápido, antes mesmo de eu vestir a fantasia, e desapareceu no quarto da minha irmã.
— Hazz, vamos agora! — disse o papai.
— Tenho uma reunião e não posso me atrasar!
— Ainda não coloquei a fantasia!
— Então ponha logo. Cinco minutos. Espero você lá fora.
Corri para o meu quarto e comecei a vestir a roupa de Elsa, mas de repente perdi a vontade de usá-la. Não sei por quê — talvez porque tivesse todos aqueles cintos e eu precisasse de alguém que os ajustasse para mim. Tudo o que sei é que daria muito trabalho vestir a fantasia, o papai estava esperando e ia ficar muito nervoso se eu o atrasasse. Então, no último minuto, coloquei a máscara ensanguentada do ano anterior. Era uma fantasia muito mais fácil: só uma túnica preta comprida e uma grande máscara branca. Gritei tchau da porta quando saí, mas a mamãe nem me ouviu.
— Achei que você ia de Anna — disse o papai quando me viu do lado de fora.
— Elsa!
— Tanto faz. Essa fantasia é melhor, de qualquer forma.
— É, é legal ​— respondi.
- X -
Preciso dizer que, naquela manhã, andar pelos corredores a caminho dos armários foi incrível. Tudo estava diferente. Eu estava diferente. Normalmente eu andava de cabeça baixa, tentando não ser visto, mas nesse dia andei de cabeça erguida, olhando em volta. Queria ser visto. Um aluno usando uma fantasia igual à minha, uma grande máscara branca de um crânio gritando, suja de sangue falso, trocou um high-five comigo quando nos cruzamos na escada. Não tenho ideia de quem era, nem ele que era eu por baixo da máscara. Perguntei-me por um segundo se ele teria feito aquilo se soubesse.
Eu estava começando a pensar que aquele seria um dos dias mais incríveis da minha vida, mas então cheguei à sala de aula. A primeira fantasia que vi assim que entrei foi uma da Anna. Tinha uma daquelas fivelas super-realistas, com um grande capuz roxo na cabeça. Soube na hora que era a Megan, é claro. Devia ter mudado a fantasia no último minuto porque achava que eu fosse de Elsa. Ele estava conversando com duas múmias, que deviam ser Darwin e Carter, e todos meio que olhavam para a porta, como se esperassem alguém entrar. Eu sabia que não era uma máscara ensanguentada que eles estavam esperando. Era a Elsa.
Eu já ia me sentar na carteira de sempre, mas, por algum motivo, não sei qual, me peguei andando até um assento perto deles e consegui ouvir o que diziam.
— Parece mesmo ele — falou uma das múmias.
— Ainda mais essa parte... — respondeu a voz de Megan. Ela pôs os dedos nas bochechas e nos olhos da máscara de Darth Sidious.
— Na verdade — disse a múmia — o que ele pensa quando vem com aquelas roupas de menininha?— Acho que ele parece um viadinho.
— É!
— Se eu fosse daquele jeito — disse a Megan, meio rindo —, juro por Deus, eu ia me cobrir toda.
— Pensei muito sobre isso — falou a segunda múmia, séria — e acho que, se eu fosse como ele... sem brincadeira, acho que ia me matar.
— Não ia nada — retrucou Darth Sidious.
— Sério, de verdade — insistiu a mesma múmia.
— Não consigo nem imaginar me olhar no espelho todo dia e me ver daquele jeito. Seria ruim demais. E todo mundo me encarando o tempo todo...
— Então por que você fica tanto tempo com ele? — perguntou Darth Sidious.
— Não sei — respondeu a múmia. — O Buzanfa me pediu para andar com ele no início do ano e deve ter orientado todos os professores a nos colocar juntos nas aulas ou algo assim. — A múmia encolheu os ombros.
Claro que reconheci o gesto. Reconheci a voz. Tive vontade de sair correndo da sala na mesma hora, mas fiquei onde estava e ouvi o Louis terminar sua fala:
— Quer dizer, o problema é que ele me segue por todo lado. O que eu vou fazer?
— Dê o fora nele — sugeriu Megan.
Não sei o que Louis respondeu porque saí da sala sem que ninguém percebesse que eu tinha estado ali. Meu rosto parecia estar em chamas enquanto eu descia as escadas. Estava suando por baixo da fantasia. E comecei a chorar. Não pude evitar. As lágrimas eram tão grandes que eu quase não conseguia enxergar, mas não dava para secá-las por causa da máscara. Estava procurando um espacinho onde eu pudesse desaparecer. Queria poder cair em um buraco: um pequeno buraco negro que me engolisse.
- X-
Menininha. Estranho. Gay. Frutinha. E.T. Viadinho. Mutante. Conheço os apelidos que me dão. Já estive em parquinhos suficientes para saber que crianças podem ser cruéis. Eu sei, eu sei, eu sei.
Acabei no banheiro do segundo andar. Não havia ninguém lá, porque o primeiro tempo já tinha começado e todos estavam nas salas de aula. Tranquei a porta da cabine, tirei a máscara e chorei por nem sei quanto tempo. Depois fui para a enfermaria e falei que estava com dor de estômago, o que era verdade, porque parecia que alguém tinha arrancado minhas entranhas. A enfermeira Molly ligou para a minha mãe e me deixou deitado no sofá ao lado de sua mesa. Quinze minutos depois, a mamãe estava na enfermaria.
— Docinho — falou, chegando perto para me abraçar.
— Oi — murmurei.
Não queria que ela perguntasse nada até que aquilo passasse.
— Está com dor de estômago? — disse ela, automaticamente pondo a mão na minha testa para checar a temperatura.
— Ele disse que estava com vontade de vomitar — contou a enfermeira Molly, olhando para mim de um jeito muito gentil.
— E estou com dor de cabeça também — sussurrei.
— Será que foi algo que comeu? — indagou minha mãe, preocupada.
— Tem um surto de gastroenterite por aí — disse a enfermeira.
— Que droga. — Mamãe balançou a cabeça e arqueou as sobrancelhas. Ela me ajudou a ficar de pé. — Quer que eu chame um táxi ou acha que consegue andar até em casa?
— Consigo andar.
— Que menino corajoso! — disse a enfermeira, dando tapinhas nas minhas costas enquanto nos acompanhava até a porta. — Se ele começar a vomitar ou tiver febre, você deve chamar um médico.
— Com certeza — falou a mamãe, apertando a mão da enfermeira. — Muito obrigada por tomar conta dele.
— Foi um prazer — respondeu a Molly, pondo a mão debaixo do meu queixo e levantando meu rosto. — Cuide-se, tá? Assenti e murmurei:
— Obrigado.
Mamãe e eu percorremos todo o caminho até em casa abraçados. Não lhe disse nada sobre o que havia acontecido e, mais tarde, quando ela me perguntou se eu estava bem para ir à rua pegar doces, falei que não. Ela ficou preocupada, pois sabia que eu adorava fazer isso. Eu a ouvi dizer ao papai pelo telefone:
— ...Ele não tem ânimo nem para ir pegar doces... Não, não teve febre... Bem, farei isso se ele não se sentir melhor amanhã... Eu sei, coitadinho... Imagine só, perder o Halloween.
Escapei de ir à escola no dia seguinte também, que era uma sexta-feira, então tive o fim de semana inteiro para pensar naquilo tudo. Eu tinha certeza de que nunca mais voltaria à escola.

Extraordinário|| LsOnde histórias criam vida. Descubra agora