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Quatro anos depois

Eu finamente estava trabalhando como jornalista.
Fui contratada por um jornal para fazer as reportagens sobre política. Não era exatamente o que eu tinha em mente, mas só de estar trabalhando na minha área me deixava satisfeita.
Um dia desses me peguei pensando em Henrique. Ele nunca saiu da minha mente e do meu coração. Eu ainda o amava da mesma forma de antes e me questionava como aquilo era possível.
Prometi a mim mesma que não investigaria mais sobre Henrique, mas a saudade foi tanta que não aguentei. Pedi à minha colega de trabalho para ver se descobria alguma coisa sobre Henrique Michelin e, por incrível que pareça, ela achou.
Henrique vivia em São Paulo agora, mas não era possível saber onde ele trabalhava. Ele era um mistério e a única informação que Joyce encontrou dele foi que ele saiu de sua corretora, a mais conhecida em vários estados, e nunca mais foi visto.
A notícia me abalou completamente. Como Henrique havia deixado sua empresa? Aquela era sua vida. Ele me deixou por causa do trabalho. Será que ele era casado, tinha filhos? Será que era feliz e sorridente como antes? Muitas perguntas se formaram em minha mente, mas o que mais se formou foi a saudade.
Tive alguns namorados, alguns rolos e alguns ficantes nesses anos que passaram, mas nenhum chegava aos pés de Henrique. Inconscientemente, eu comparava todos a ele e claro que nenhum era igual.
Henrique mudou minha vida para sempre, mesmo sem estar presente. Eu não sei o que faria se visse Henrique na minha frente. O que eu sentia era um misto de saudade, amor, mágoa e decepção.
Nunca contei para minha mãe sobre Henrique. Não queria que ela sentisse pena de mim ou se sentisse culpada, ainda mais agora.
Ela parou de trabalhar e voltou a beber, mas o dinheiro que tínhamos não era o suficiente para entrarmos com outra intervenção. Eu ficava ao lado dela o maior tempo possível, mas mesmo assim parecia inútil. Minha mãe se fechou em sua bolha e jogou a chave fora.

• • •

Eu estava saindo do trabalho quando recebi um telefonema de casa. Dona Maria me informou que, ao chegar em casa, encontrou minha mãe desacordada no banheiro. O buraco que se formou em meu estômago me fez sair correndo.
Dona Maria era nossa vizinha. Ela tinha setenta e dois anos e ficava de olho na minha mãe quando eu estava fora. Ela ia diversas vezes em casa para distrair minha mãe, que não fazia mais nada. Ela comia por obrigação e vivia também por obrigação.
Dois dias antes, fiquei sabendo que ela havia parado de tomar o antidepressivo. Brigamos feio, mas pelo visto foi em vão.
Ao chegar em casa, vi duas pessoas encaixando uma maca coberta com um saco plástico preto em uma perua do IML. O chão sumiu da minha frente.
Aquilo estava mesmo acontecendo? Minha mãe havia me deixado daquela maneira, sem ao menos se despedir de mim? Aquela era mesmo a minha mãe ou foi um terrível engano?
Me sentei no meio da rua, entre as viaturas e a ambulância. As luzes piscantes me deixaram com tontura e enjoo. Ou era somente a verdade que me enjoava. Eu estava ali sentada assistindo tudo, mas era como seu eu estivesse fora do meu corpo vendo aquela cena patética na minha frente.
Minha mãe se suicidou assim que eu saí para o trabalho. Ela deixou apenas um bilhete de despedida, como se aquele pequeno bilhete fosse suprir a falta que ela faria. Como se aquele pedacinho de papel insignificante tirasse o luto e a dor de dentro de mim.
Nele estava escrito somente "Eu sinto muito, Amora"
Ela sentia muito. Ela me deixou. Ela acabou com a própria vida sem pensar em mim e no que seria de mim. Ela havia tomado a saída mais fácil, sem pensar que eu ficaria sem uma. E ela sentia muito?
A dor destruidora passava por todos os poros do meu corpo. A culpa de não ter feito mais me acompanharia para o resto da vida. O sentimento de abandono se tornou parte de mim. Por que era tão difícil encontrar alguém que não me abandonasse? Alguém que achasse que eu valia à pena?
Maria me levantou do chão e me levou para sua casa. Eu não podia entrar na minha, porque era cena de um crime.
Maria me sentou no sofá enquanto foi fazer um chá para mim. Eu ainda estava em choque e não aceitava que aquela era mesmo a realidade. Eu não podia voltar no tempo e pedir que minha mãe me desse uma chance de tentar ajudá-la. Eu estava presa naquele momento, sem ter o que fazer ou para onde ir.
Maria me trouxe o chá e ficou me acalmando. Ela era como se fosse uma avó para mim. Ela arrumou o quarto de hóspedes e disse que resolveria as coisas por mim. Eu somente concordei. Estava em choque, sem condições de resolver nada.

• • •

O corpo da minha mãe ficou no IML por dois dias, antes de ser liberado para ser velado. Foi constatado o suicídio por medicações que lhe causaram duas paradas cardíacas. Como ela não foi socorrida, não resistiu.
Liguei para meu pai para avisar que o velório dela aconteceria na manhã seguinte. Ele disse que sentia muito, mas que não sabia se iria comparecer. Desliguei o telefone em seguida.
Se meu pai não prestava para dar um último adeus a ela, então ele não precisava falar comigo nunca mais.
Maria me ajudou a resolver toda a burocracia e iríamos direto da sua casa para o velório.

• • •

Na manhã seguinte, tive que me vestir de preto. Eu estava de luto pela minha mãe, pela minha alma e pela minha vida.
Não havia ninguém que pudesse me ajudar naquele momento. A dor era imensurável. O desespero era insuportável. Saber que eu não teria a quem dar bom dia, ou alguém para me felicitar por um progresso no trabalho, me destruía por inteiro. Não tinha ninguém, mais uma vez.
Maria foi antes de mim, para receber as poucas pessoas que se despediram da minha mãe, enquanto fiquei me preparando psicologicamente para a despedida. Respirei fundo e fui enfrentar um dos dias mais difíceis da minha vida.

• • •

O lugar onde seria o velório estava um pouco cheio. Lá eram feitos vários velórios ao mesmo tempo.
Caminhei até o primeiro velório e pude ver o caixão repleto de flores brancas. As lágrimas brotaram em meu rosto, impossibilitando que eu enxergasse direito, e corri até ela apoiando a cabeça em sua barriga.
Chorei quase tudo o que tinha para chorar. Eu chorei, briguei, implorei e pedi perdão, ainda abraçada com aquele corpo sem vida. Levantei meu rosto para secar as lágrimas e fiquei olhando aquele defunto na minha frente. Será que a necromaquiagem modificava tanto assim uma pessoa? Ela estava tão diferente que parecia até outra pessoa...
Cocei os olhos para enxergar melhor, analisei mais de perto e constatei que aquela não era a minha mãe.
Me afastei repentinamente. Olhei ao redor e vi as pessoas me olhando com pesar. Um senhor veio até mim e colocou a mão em meu ombro.
– Tudo bem, querida?
– Sim...
– Você a conhecia? – Ele perguntou apontando para o caixão.
– Eu...
– Eu agradeço os sentimentos, senhorita, mas acho que você está chorando pela defunta errada. Essa daí era o cão, tenho certeza que ninguém choraria por ela dessa maneira.
Ele sorriu e eu olhei mais uma vez para o caixão. Claramente aquela não era minha mãe. Sorri sem graça.
– Eu sinto muito!
– Não sinta! Pelo menos alguém chorou por ela – ele falou sorrindo.
Sorri em resposta, me desculpei e saí correndo de lá antes que mais alguém visse o que eu havia feito.

Delicioso (Des)Conhecido (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora