Lembranças

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__Ariel, temos que voltar para Atlantis!__ Sebastião berra na minha orelha.

_Eu sei, eu sei.__ digo descendo da pedra.

Eric, Marco e Max já estão fora de vista e a saudade está pesando em meu coração.

Ao tentar descer da rocha, uma das minhas mãos escorrega no limo e eu despenco lá de cima de uma forma nada graciosa.

Meu corpo aquecido pelo sol atinge a água fria com tudo.
Fico imóvel para que minha temperatura se adapte ao ambiente, isso dura apenas alguns segundos mas é tempo suficiente para eu ver a silhueta cinzenta de duas criaturas na escuridão abaixo de mim.

Por um momento, penso que são carnivoris mas então percebo que na verdade são duas enguias cinzentas enormes.

Assim que meu olhar encontra os olhos amerelos e anormalmente brilhantes delas, as enguias, que até então estavam perfeitamente petrificadas em seus lugares, se movem com uma velocidade surpreendente, sumindo nas profundezas do oceano sem deixar rastros.
Foi tão rápido e silencioso que eu poderia simplesmente ter imaginado aquilo.

Observo minhas escamas verdes adquirem vários tons com o balançar da minha cauda enquanto vasculho minha mente, tentando me lembrar de onde eu conhecia essas enguias.

Provavelmente em uma das aulas de história em Atlantis eu devo ter aprendido algo sobre elas. Talvez sejam mascotes de algum rei ou rainha de um dos Sete Reinos.
Eu sou péssima para lembrar dessas coisas.
Quando se trata de músicas e instrumentos é bem mais fácil memorizar.

A temperatura do meu corpo já está em boas condições. Então resolvo voltar a superfície e chamar meu amigos... Não que eu considere Sebastião como meu amigo, na verdade ele é meu professor de música e, nos últimos dias, minha babá...Bem, talvez eu tenha um pouquinho de consideração com ele, mas não admitirei isso nunca. NUNCA.

_Ah!Ariel!__ diz a gaivota branca__ Pensei que tivesse desmaiado lá em baixo, afinal a queda foi feia.

Dito isso, ele e Sebastião caem na gargalhada.

__ Parem de rir d-d-dela!__Linguado rebate mas vejo que ele está colocando disfarçadamente uma de suas nadadeiras azuis na boca para não demonstrar que está rindo.
Traidor...

__Há há, estou morrendo de rir_ reclamo mas ao imaginar a cena pela visão deles, começo a rir também.

Após o acesso de risos, Sebastião torna a dizer que precisamos voltar para Atlantis, então nos despedimos de Sabidão e retornamos para o mar.

Durante todo o caminho de volta, fiquei atenta a qualquer vislumbre de silhuetas cinzentas mas não obtive nenhum sinal de enguias gigantes ou carnivoris em parte alguma.

__Ariel, está tudo bem com você?__pergunta Linguado

__Sim.__ respondo distraída com uma sombra deslizante cinza que depois acabou sendo uma moréia verde.

__Tem certeza?__ meu amigo listrado insiste.

__Tenho sim__digo com um sobresalto__ Para que tanta preocupação?

Ele parece magoado__ Bem, é que você está tão quieta. Normalmente você fica o caminho todo discursando sobre como o mundo dos humanos é incrível... E hoje você deveria estar mais animada ainda porque viu um humano bem de perto, literalmente.
Ele até perguntou seu nome...

Então me lembro do belo príncipe Eric e sorrio instantaneamente.

__Crianças, vamos estabelecer uma regra crucial__ diz Sebastião fazendo com que eu tenha vontade de dar um peteleco em sua testa minúscula por ter nos chamado de crianças. __ Ninguém, eu repito, NINGUÉM pode dizer uma palavra sequer sobre o que aconteceu na superfície. Entenderam?

__ SIM__ acenamos com a cabeça.

__ Ótimo__ ele declara visivelmente inquieto.

__Mas, Sebastião...__ afasto meu cabelo flutuante dos olhos para poder vê-lo melhor__ Você não vai informar meu pai sobre o ataque horrível dos Carnivoris?

Ele suspira, infeliz:

__Eu bem que gostaria, Ariel, mas como contar uma coisa dessas sem deixar de mencionar que estivemos na superfície, sendo que o ataque ocorreu somente lá?

Resolvo não responder, pois ele tem razão.
Se contarmos para alguém o que vimos, estaremos deixando bem claro que infringimos a mais rigorosa lei de Atlantis.
Sem mencionar que meu pai iria me deixar de castigo pelo resto da vida.

NÃO. Sebastião tem toda razão.

Olho de soslaio para ele e percebo que talvez o siri realmente seja uma criatura confiável.
Mordo o lábio refletindo se eu devo ou não contar para ele sobre a suspota aparição das enguias gigantes. Talvez ele saiba algo sobre elas.

Mas então me lembro que ele é o braço direito do meu pai e decido não arriscar tanto a minha sorte.
Sebastião pode não aguentar tantos segredos e acabar contando tudo para o rei Tritão, como se a mera presença de duas enguias significasse que estamos sendo vigiados por algum inimigo antigo e poderoso...
Isso é exatamente o tipo de coisa que Sebastião poderia fazer.

Volto a pensar no belo humano que salvei de um naufrágio/ataque brutal de carnivoris.
Fico relembrando cada detalhe do seu rosto, o timbre agradável da sua voz, a cor azul intensa e incrível dos seus olhos...

Espere... olhos azuis intensos?

De repente, uma lembrança surge lá no fundo da minha mente.
Vejo um quadro e nele estão pintados os mesmos olhos azuis intensos de Eric, mas a criatura que os porta não está nítida na lembrança e por mais que eu me esforce, não consigo ver nada além dos belos olhos que obviamente foi a única coisa que mais me impressionou no quadro.

Do mesmo jeito que veio, a lembrança se esvai deixando uma curiosidade excruciante em mim.

A única coisa que tenho certeza é que só há quadros assim no Museu de História Marinha de Atlantis.

Mas isso é tão... impossível!
Eric é humano.
Como os olhos dele podem ser idênticos aos de uma criatura marinha?!?

Decido ir para lá imediatamente, e posso até aproveitar e tentar encontrar alguma informação sobre as enguias... Se é que eu realmente as vi.

E assim, com a cabeça girando de perguntas, nado em silêncio absoluto, sob os olhares abismados de Sebastião e Linguado.

Lá longe, os portões dourados de Atlantis brilham tão intensamente quanto os olhos do príncipe humano.

A Pequena SereiaOnde histórias criam vida. Descubra agora