Décimo Nono

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"Eu me sentia entorpecida. Não havia chorado e nem sentia necessidade disso. Algo definitivamente assustador considerando a situação. Seria natural também que eu quebrasse um ou outro móvel, arremessar as coisas pelas paredes trás certa fineza a qualquer cena dramática. E de uma coisa eu tinha certeza, nunca houvera cena tão dramática como aquela em toda a minha vida. Mas talvez fosse apenas o meu lado mais racional dizendo-me intimamente que eu não poderia me dar ao luxo de quebrar a mobília, pois minha nova condição queria dizer também que eu já não podia contar com renda nenhuma e consequentemente não poderia repor nada que fosse perdido.

Fazia mais ou menos umas duas horas que Alfonso tinha saído porta a fora com a expressão mais melancólica que eu já havia visto estampada naquele rosto. Resquícios de lágrimas recém derramadas também completavam a visão aterradora de sofrimento estampada ali, o rosto do homem que eu sempre amei e que provavelmente sempre amaria. E também aquele que havia me ferido tão fundo, tão cruelmente que não havia me deixado outra escapatória a não ser colocá-lo para fora da nossa casa. Do nosso lar.

Eu tinha acabado de abordá-lo sobre o e-mail que eu havia visto e descoberto também que o meu marido, não era apenas meu. Lamentavelmente. Eu estava sentada na minha cama, aquela que tinha sido nossa por cinco anos. Absorvendo em doses homeopáticas tudo o que havia acontecido. Talvez o torpor fosse algum mecanismo de defesa, talvez eu nunca sairia dele. Pois cada vez que eu pensava racionalmente o que seria da minha vida sem Alfonso algo ameaçava quebrar-se em meu interior. E eu tinha medo disso.

Mesmo assim eu continuava aguardando pacientemente o momento que eu cairia, que sentiria toda a dor que estava guardada ali para mim, não tinha outra saída, eu precisaria enfrenta-la cedo ou tarde. E eu também poderia superá-la quem sabe, refazer minha vida. Valorizar-me...

Oras, quem eu estava tentando enganar? Isso não aconteceria, jamais. Tudo estava perdido. Senti um nó em minha garganta, ameaçando sufocar-me, o torpor havia ido embora e as lágrimas vieram espessas e abundantes. Porém diferente do que eu imaginei, elas não era libertadoras, muito pelo contrário. Elas me prendiam."

A segunda sensação que eu tivera aquela manhã foi uma imensa irritação comigo mesma. Sonhar com Alfonso nesse dia era no mínimo agourento. Sequei as lágrimas que eu havia derramado durante o sono com a ponta do lençol e levantei-me da cama, sentindo que não havia descansado nada. E esse definitivamente um dia que eu precisaria de todas as minhas forças para fazer o que deveria ser feito.

Já fazia um mês, tanto do trato que eu havia feito com Alfonso, tanto do trato que eu havia feito com Elizabeth. Alfonso como prometido havia tentado me reconquistar dia após dia, eram bombons, flores e até sapatos. Sempre acompanhados das fatídicas cartas que tinham o poder de acabar com meus dias. E Elizabeth também havia cumprido com o nosso trato, me arrumara um advogado muito prestativo e de quebra eu não precisaria arcar com seus honorários. Tão eficaz ele havia sido que o maldito dia do julgamento havia chegado. Minhas entranhas se retorceram desconfortavelmente com a perspectiva de entrar em um tribunal na companhia de Poncho e Elizabeth.

Depois de me arrumar demoradamente e sentar-me na mesa da cozinha diante de um prato de cereal que me trouxera náuseas a campainha tirou-me de meu devaneios.

Claro, era o último dia do meu trato com Alfonso. Ele não perderia a oportunidade de me desestabilizar no último momento.

Fui arrastando os pés até a porta da frente, arrumando o vestido negro e formal que eu vestia, que alcançava a altura dos joelhos, durante o trajeto. Quando abri a porta o porteiro entregou-me apenas um envelope. Agradeci e sentei-me na poltrona, pensando se deveria ou não abrir.

Diferente das outras vezes Alfonso tinha mandado apenas a carta, sem flores e nenhum mimo a mais. E diferente também das outras vezes quando abri o envelope encontrei não apenas uma carta e sim duas. Uma delas muito menor que a outra. Comecei por essa, respirando profundamente antes de começar a ler.

Olá meu amor!

Conforme prometido essa será a última carta. Você respeitou o meu prazo e eu respeitarei a sua privacidade.

Eu passei horas e horas pensando em qual das nossas histórias seria a mais impactante para marcar o fim. Pois, sim querida. Estou desesperado para fazê-la mudar de ideia e perdoar-me, queria algo especial.

Porém eu também sei que muito provavelmente eu estou em uma guerra que já está perdida, se em trinta dias não consegui convencê-la do meu amor, não seria no último que eu conseguiria. Então, na outra carta está a única coisa que pode definir como serão as coisas daqui para frente. Para mim e também para você.

Com amor, Poncho.

Franzi o cenho em dúvida. E agarrei a outra carta com a mão esquerda, cogitando a hipótese de não abri-la. Ou quem sabe abri-la depois do julgamento. Tudo bem que isso seria trapacear quebrar a minha parte no trato. Alfonso tinha dito que era a última. Com os dedos levemente trêmulos abri o papel, quando me dei conta do que se tratava senti uma enxurrada de lágrimas cegar-me e agradeci mentalmente a mim mesma, por ter escolhido sentar.


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