"O brilho do céu se esconde atrás das nuvens. Onde está o bem? Onde está o mal?"
O frio penetrava suas narinas com força, congelando seus pulmões e soterrando suas lágrimas em um profundo e obscuro mundo de terror. Há dias se sentia impotente em relação a si mesma, em relação ao mundo que a cercava e tudo que via. Ela era tão pequenina, porém tinha esperanças em se libertar das correntes que a impediam de voar dali de baixo.
Tudo é mais frio aqui... bem mais...
E num rompante, quase inevitável, ela adormeceu para sair da zona de sofrimento. Seus olhos pesavam como bolas de concreto, a cabeça a todo momento resvalando uma dor gritante. Desde que aquela mulher a levou para aquele lugar imundo, cheio de ratos e aranhas gigantes, Mobby conheceu o que a vida tinha de mais ruim. Tinha perdido as contas de quantas vezes por dia lembrava da mãe e começava a chorar. Um choro acatado, nervoso, a mão levada à boca para que a mulher não escutasse.
Dois dias antes Jud Primoth ouvira seu choro. Ela estava a um canto da escada no porão, abraçando os joelhos com os bracinhos, soluçando e liberando as lágrimas em turbulência quando a mulher apareceu. Ela estava com o terço que sempre usava na mão esquerda, os dedos apertando cada uma das bolinhas pretas. Os sapatos marrons surrando os degraus velhos e cheios de pó. A cada passo que dava um som ruidoso surgia na madeira, algo parecido com uma prateleira prestes a partir.
- Cala a boca, verme do inferno! - ordenou Jud, parando três degraus acima. - Não tente me convencer a tirá-lo daí, você ouviu? Shh... o seu choro não me abala!
- Minha... mãe... - disse Mobby entre um soluço e outro, trêmula e espantada. - Eu quero vê-la.
Jud deu uma risada monstruosa. Dentro daquela blusa de manga longa fechando até o último botão apertando na garganta e uma saia parecida com a que usou no dia que Mobby a vira pela primeira vez, a mulher terminou de descer a escada (o pó subiu de vez no último degrau) e observou com olhos paranoicos a garotinha ao canto do porão.
- Vocês são todos parecidos conosco fisicamente, e isso é o que me espanta! Saber quem é um servo de Deus, assim como eu, e um cordeiro diabólico de satã! Deus me enviou uma mensagem em meus sonhos, ele estendia sua mão e dizia meu nome. Eu sabia que tinha chegado a minha hora, então vocês surgem... pragas das chamas e ardilosas criaturas servidas ao "coisa ruim" lá embaixo! Agora querem que eu acredite que eram mãe e filha que viviam uma vida de paz e fé... PARA DE CHORAR! - Jud apontou o dedo para Mobby assustada, o terço pendendo sobre o indicador, a cruz na ponta dando voltas e brilhando com a luz da vela em uma mesa próxima. - Minha vida andava tendo muitos problemas e o mal queria que eu continuasse aqui, a sofrer, a ser torturada por coisas mundanas e repugnantes da terra... Deus sabe do sofrimento de cada um de nós!
Mobby sentiu um aperto no peito, o mesmo que sentia toda vez que abafava o choro quando a mulher estava por perto. Ela sabia que não era verdade. Não era nada daquilo que a mulher louca achava que ela era. Que apesar da dor que sentia, tudo queria no momento não estava concentrado apenas em satisfazer a vontade de sair dali, mas de saber se a mãe estava bem. Ela tinha visto sangue. Cabeça. Cabelos. Chão. A única vez que via a mãe imóvel daquela forma tinha sido em um sono profundo durante uma noite. Agora tudo isso era lembrança.
- Eu estou... com... fome... - falou Mobby, delicadamente separando os braços dos joelhos e os apertando ao redor das canelas.
Jud Primoth deu um risinho de lado, caminhou de um lado a outro, a sua sombra projetando-se na parede como um grande ditador da fé;
- Coisas como vocês não sentem fome. - sua expressão impassível e cruel. Ela caminhou até a base da escada e Mobby ouviu mais uma vez sua voz ecoar no ambiente sombrio e gélido ali de baixo: - E caso eu esteja errada sobre isso, os ratos gordos daqui devem satisfazer seu estômago.
Mobby se retorceu só de pensar naquilo. A última coisa que ouviu foi a mulher batendo a porta lá em cima e as correntes darem a volta na tranca. Por último o "clic" do cadeado se fechando.
E agora Mobby lembrava daquilo com uma mão apertando sua barriga dolorida. A fome tinha se transformado em um monstro tão grande quanto Jud Primoth, que a encarava a toda hora com olhos vermelhos e amedrontadores. Ela ouviu o barulho da tranca e das correntes. A garota viu a mulher fazendo algo que até então não tinha presenciado. Jud assobiava enquanto descia os degraus, que rangiam com seu peso. Que não era muito, por sinal.
- "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem". - ela trazia em uma das mãos, como fazia rotineiramente, a bíblia, dessa vez aberta, enquanto ela passava os olhos pela página e a lia em alto e bom som.
Jud desceu a escada por completo e olhou bem para Mobby adormecida a um canto. Além da bíblia, a mulher levava consigo uma barra de ferro com uma dobradura esquisita na ponta. A dobradura brilhava intensamente num laranja vivo.
- "Quem crê no Filho tem a vida eterna, já quem rejeita o Filho, não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele." - continuou, enquanto se aproximava de Mobby.
A menina espantou-se com a voz da mulher. Pensou um minuto que poderia ser o monstro faminto novamente, mas era muito pior. A mulher parecia a ela um verdadeiro ser sombrio, a blusa e saia negras, Jud segurava firme a barra que brilhava a frente de Mobby. A garota começou a chorar antes mesmo de Jud aproximar a barra dela. Não tinha forças para se erguer. Uma ratazana passou correndo por cima dos seus dedos, mas ela não se importou. Nem bem notou.
- "O que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé."
Jud, tão rápida quanto a ratazana que passara segundos atrás, apertou a dobradura do ferro quente contra a perna de Mobby. A dor excruciante a fez gritar. A fome pareceu explodir e sair correndo, o medo tinha virado um manto que a cobria sem pudor e o sofrimento uma onda que a engolia levando-a aos confins da amargura. Mobby sentiu cada centímetro do ferro marcar a pele, e quanto mais repuxava a perna, mais a mulher insistia em pressionar.
- "Ainda que eu ante pelo vale da sombra da morte... - Jud não largava a barra, a bíblia firme nas mãos. - não temerei mal algum... - Mobby nunca antes tinha chorado tão arduamente. A menina implorava para que Jud parasse. Os gritos dos ratos em cada espaço do porão e as aranhas se enrolando em suas teias, temendo o pior. - porque tu estás comigo..." - uma luz entrou pela fresta da janelinha, espantando o pó e formando um ponto claro no centro do lugar.
Quando retirou a dobradura quente da perna de Mobby o grito da menina foi seguido por um choro incontrolável. Lágrimas quentes desciam pelas bochechas rosadas. Jud virou-se, fechando a bíblia, apertando-a contra o peito e subiu a escada. O assobio retornara aos seus lábios.
Mobby não conseguia respirar. A cicatriz já começava a se formar horrivelmente na perna esquerda. Bolhas de sangue e pele queimada se formavam no lugar. Ela sentiu uma tontura a atingir, então fechou os olhos, em mente que adormeceria.
Desmaiou. O assobio de Jud Primoth ainda ecoava lá em cima.
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Olhos Trágicos
ParanormalEm uma pequena cidade de nome Little Joanesburg não é comum se ver comentar muito sobre catástrofes ou problemas sociais. Com uma bela igreja no centro da cidade, lojas de utensílios maquinais e diversidades sendo frequentadas todos os dias, uma pr...