8. Ora, ora...

30 2 0
                                    


"A vontade que esmaga o peito em remorso é a mesma que o enche de coragem."


         Atravessaram a Niachal Row em direção à avenida leste, os pneus da moto levitando no asfalto numa leveza impressionante. Mobby segurava bem na jaqueta de Dom, enquanto ele acelerava nas curvas tentando chegar o mais depressa possível no mesmo ponto que a tinha resgatado. A menina fechou os olhos por algumas vezes e sentiu o murmúrio singelo das histórias da mãe entrando por seus ouvidos; sentiu o beijo que a tocava na bochecha, quente e prazeroso. Por fim, não soube se comemorava ou se se afligia. De qualquer modo seus olhos não pararam de enxergar cada metro da estrada como uma aproximação do sacrifício. 

      Dom acharia melhor ter regressado. Tomado de volta a  Yme's e a Joshey Mill, cruzado a oeste com a Vanistes e seguido para a Caverna. A ideia de ter de enfrentar novamente a louca Primoth era suicida, e ele sabia disso desde o princípio. Diante de tudo ele não sabia realmente as motivações de Jud Primoth, mas Mobby sabia. A garota a tinha visto na última visão. E em todas as visões não só se enxerga as veias que formam a morte, mas os entrelaces que percorrem o caminho da vida de alguém. Havia vezes que Dom enxergava cada etapa da vida de alguém. O berço de madeira clara e os brinquedos jogados de lado, então lhe passava os primeiros passos e as primeiras palavras. Então a juventude e a fase adulta. Tudo numa linha cronológica perfeita, seguindo em direção à morte. E isso era o que tinha de mais duro. Sempre.

      Quando a moto parou do outro lado da rua, Mobby saltou da garupa e Dom teve que ser incisivo para que ela não fizesse algo impensado. 

- Escute-me, Mobby... - ele a segurou pelos ombros. - Não sabemos o que nos aguarda lá dentro. Eu prometi que você não veria Jud Primoth novamente, e estou mantendo minha promessa. Eu sei o que vi lá dentro. Somente eu posso saber das consequências. Preciso que me espere...

- Não posso, Dom. - havia um teor de postura na voz dela e isso o agradava. - Você viu Jud em apenas duas visões. Eu, além disso, estive com ela. Ela me torturou, Dom. Ela me torturou e está fazendo o mesmo a minha mãe. Por favor, preciso entrar. Talvez eu possa ser útil... talvez eu possa servir de isca... ou bode expiatório...

Dom ergueu uma sobrancelha com aquele termo. "Bode expiatório". 

- Não sabemos o que vamos encontrar lá dentro, lindinha...

- Eu sei. - ela deu dois passos a frente, olhando a casa que tinha libertado o monstro da fome dentro de si e que agora libertava outra criatura. Este tinha fome de outra coisa. - Eu sei que vamos encontrar Alesh Alliot, minha mãe. Minha mãe, Dom. Por isso devo entrar.

Ela o olhou como nunca antes tinha olhado para alguém antes. Era um olhar de piedade e persuasão, como se tomasse nota da coragem que tinha perante a situação. 

- Certo. Tudo bem, mas faça somente o que eu ordenar. - Dom a levou para a calçada de Jud Primoth. A casa com os vasos suspensos e o jardim bem tratado não davam a impressão de estarem sendo cuidados por uma pessoa como Jud. 

Mobby meneou a cabeça em concordância e os dois adentraram o recinto.


* * *

      Um arrepio cruzou da espinha a nuca, percorrendo o corpo todo num choque constante. Mobby sabia exatamente o que tinha passado e sofrido naquele lugar. As lembranças retornaram num rompante, agressivo e fatal. Todas aquelas coisas que passara, a marca cicatrizada na perna que agora se formava numa imagem de uma cruz, o pequenos furos na barriga feitos pela faca da própria Jud, e até o monstro da fome. Ele parecia retornar dos calabouços da insanidade e cruzar os céus do sofrimento. 

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora