14. Isca

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"O quão fracas são as pessoas, que por infortúnio lamentam a morte e por vaidade se apoderam da  vida."

Certa vez, em Bermic, Mobby passara uma semana inteira com Alesh na casa de praia de Ted Wilson. O enorme cachorro, Alf, de orelhas largas e focinho negro era praticamente o dobro da massa corpórea dela, para falar a verdade. Latia ferozmente quando alguém entrava na casa, latia ainda mais quando saía. Vez ou outra era detestável, todos aqueles grunhidos e irritabilidade que fazia. Um gigante com manha, era o que Ted Wilson dizia. E por certo, estava claro que tinha um apego infantil ao animal. 

Ted Wilson tinha sido o primeiro homem que Mobby realmente achara que tinha se interessado por sua mãe. A verdade era que Alesh nunca a havia contado o que acontecera ao pai, de que forma ele morrera antes de Mobby nascer. Era um rito mortal não tocar no assunto. Mas diante de qualquer tristeza ou depressividade, Ted Wilson preenchia um espaço único em Alesh Alliot. Um espaço que ergue qualquer cabeça e a oferece esperança, um espaço que seguramente expulsa um mal-estar que ferventa no peito, dando lugar a um êxtase de paz e aconchego. 

A casa de praia servira de refúgio por não mais de uma semana. Mobby e Alesh souberam em seguida que Ted Wilson a vendera. O comprador era um proprietário de carros da Alemanha, interessado em construções diversificadas. E a casa de praia de Ted era um tanto quanto diversificada, a notar pelas artes que ficavam expostas na varanda e nas colunatas improvisadas aos fundos. O pior não tinha sido o fato da venda da casa, mas de Ted Wilson simplesmente desaparecer. Um amargor agarrou as entranhas e órgãos vitais de Alesh como uma mão esquelética e poderosa. Mobby sentia o mal que a situação causava à mãe. 

Talvez ela encontre a beleza da vida novamente...

Talvez...

Os pensamentos de Mobby se reduziam a uma inocência fugaz, quase uma ignorância infantilizada. A vida derruba. A vida tira. A vida destrói. Nada que façamos poderá reverter a situação, a não ser aceitá-la tentando sentir o mínimo de dor possível. 

O tempo nadou em sucessivas inglórias. Seis meses depois, tomada de certa emoção e uma tontura irreal, Alesh tomou nas mãos uma carta. O envelope era de um amarelo-giz e forçava uma letra bela, sem sucesso. Tinha um certo toque de insegurança nas palavras trêmulas. O remetente era Ted Alexandro Wilson, e escrevia de Verona, Itália

"Al... (como eu te chamava),

Desculpe-me. Nada mais peço além de perdão. Não preocupe-se comigo, e sei que você é capaz o suficiente para entender minha partida. Alf sente sua falta. A de Mobby também. Mas o melhor é que ele está bem. E como está? A casa de praia agradou bem ao sr. Gefrey, fiquei sabendo. Pensei bem sobre a proposta de vendê-la, na verdade eu cogitei em deixá-la para você e Mobby. Na verdade encontrei outro presente. Acho que vocês irão gostar. Vocês duas... não sabem o quão maravilhosas foram para mim. Deus sabe! Oh, sim, Ele sabe! 

Desejo encontrá-la novamente, Al. E Mobby também. Você tem uma linda filha, e sei que você sabe disso. 

Um beijo,

Ted. (E Alf está latindo. Também é uma forma de beijo.)"

Quando Alesh finalizou a carta, releu cada linha quatro vezes, achando seriamente que tinha deixado passar alguma coisa. O motivo... mas nada. Era aquela mensagem, com aquela quantidade de palavras e fim. Nada mais. 

O presente no qual Ted Wilson comentara chegara uma semana após a carta. Uma casa em Little Joanesburg, cidade vizinha a Undall, onde Alesh e Mobby viviam antes. Alesh, trêmula, custou a acreditar. Os documentos e propriedade da casa estavam em seu nome. E junto a isso o corretor a dissera que Ted Wilson tinha certeza absoluta do que fazia. Contara em detalhes o que ele falara antes de morrer, no leito de um hospital, vítima de um câncer no cérebro. Alesh compreendia tudo agora. A partida... ele não queria que ela se preocupasse, tanto que não mencionou sobre o motivo na carta. Era uma despedida. E as lágrimas correram como o mar levando a areia com ele, arrancando a essência da doçura. 

* * *

Cortando o ar, o olhar de Patrus ficou mais rígido. Engoliu a saliva acumulada, o pomo de Adão fez relevo e encostou na lâmina.

- Desgraçada... eu devia saber! Eu deveria saber que você é uma puta horrenda... - cada palavra de Patrus rugia no ar com camadas de incredulidade. Enfervecendo pouco a pouco. 

- Pense duas vezes antes de tramar tudo contra seus irmãos, Pat! - Leda se encontrava na mesma situação de uma hora atrás, quando fez o mesmo a Dom. Mas agora ela tinha tamanha sede de passar a lâmina de vez pela garganta de Patrus. Pela falta de cabelo Leda passou o braço de um ombro a outro dele.  - Você iria levar Mobby àquela vaca cristã e em troca ela te daria uma bala no meio de seus olhos. 

- Ela me prometeu...

- Sabe, Pat... nunca duvidei que fosse um tremendo asno! Agora eu tenho orgulho de minhas certezas, mais do que nunca! Acreditar nas promessas de uma assassina é um pecado mortal. Talvez seja também uma afronta a inteligência humana, quem sabe?

- Você está cometendo um erro, Leda! Aquela mulher quer a garota - Patrus continuava a encarar Mobby ao canto de modo sombrio, inescrupuloso. - e só vai nos deixar vivos se tê-la em mãos. Ela invadiu a Caverna por meio da menina e agora, diante de todos nós, tudo o que ela pensa é em ter a garota. Tudo! Pensa bem... se tivermos a garota conosco ela continuará a matança! 

- Errado, Pat! Jud não nos encontrará! - afirmou Leda, firme.

- Não estou se referindo a nós, gênio! Mas às que estão na Caverna sob o poderio de Jud Primoth. 

- Do que está falando?

- Jud não matou a todos. Os que não conseguiram fugir ainda tiveram a chance de viver, mas estão presos na Caverna, nas mãos dela. 

- Quantos?

- Vinte. - respondeu Patrus, esperançoso em convencer Leda. - Pense bem! Vale mesmo a pena perder mais vinte dos nossos em troca da garota? Todos os nossos irmãos e irmãs que sempre conviveram conosco, enquanto essa pirralha chegou há poucos dias e está sendo tratada como uma pequena deusa da redenção? Pense bem, Leda...

Leda encarou Mobby, que por um minuto achou que tudo estava perdido, que Leda desistiria de protegê-la e a entregaria a Patrus de instante. Mas ela relutou:

- Você... é... um... imbecil, garoto! - murmurou Leda a Patrus, apertando a faca contra o pescoço. - Quem garante se assim que você seguir com esse plano inútil e entregar Mobby a Jud Primoth, que ela não vai matar a todos? Você mesmo disse que ela quer a garota mais do que tudo, então não teríamos mais serventia para ela! Um a um... massacrados! O primeiro será você, Patrus, e sabe disso!

- Bobagem! - as palavras foram cuspidas, enfurecidas. - Se não a levarmos hoje, como prometi, vinte irmãos nossos morrerão. É isso o que realmente quer, Leda? Tudo bem... vá em frente! Corte a minha garganta e continue a prender essa pirralha aqui! 

- Não! - Leda o empurrou contra a parede, segurando firme no peitoral de Pat. Ele não tinha para onde ir. A ponta da faca apontada para o meio do abdome, tocando levemente no tecido do casaco. - Nos leve até lá! Quero ver com meus próprios olhos se é verdade! 

Leda o empurrou porta afora, enquanto seguia logo atrás. Mobby saiu do canto e Leda apertou-lhe a mão, como se dissesse que tudo ia ficar bem. 

- E você já sabe, Pat! Se tentar fugir ou bancar o gênio, lembre-se de quem venceu há dois meses o campeonato na Caverna de arremesso de faca no alvo.

Patrus engoliu em seco. Leda vencera com três mil e cem pontos. Ele ficara em último com cento e trinta.

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora