11. O fantasma de Vinslow

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"Lembrar o passado é vivenciá-lo novamente sem o poder de mudança. É apreciá-lo em seu material bruto, sólido e imutável."

- Oi, lindinha - a voz de Dom tinha o mesmo tom de quando se dirigia a Mobby, mas agora um pouco menos dedicada. - Desculpe-me por Leda.

Mobby se encaminhou até as pedras uma hora depois da discussão de Dom com Leda. A preocupação dentro de seu peito a esmagava como uma pedra contra o peito de um passarinho. 

- Eu... irei encontrar um lugar com mamãe... vai ficar tudo bem. Só... vim dizer adeus. 

Era a primeira vez que como uma bomba explodindo frente ao seu rosto que Dom se espantara tão facilmente com as palavras de alguém. 

- Não... de forma alguma! Não...

- Dom, eu não posso mais ser a causadora de tantas tragédias. - aquelas palavras eram sábias demais para uma criança de oito anos. - Eu... fui culpada pela morte dos que você amava como uma família, fui culpada por todos estarem aqui, nesse momento, sem ter para onde ir. Culpada por você e Leda brigarem...

- Lindinha, lindinha... olha só! - Num solavanco ele ficou de joelhos e segurou a cabeça de Mobby com as duas mãos, cada uma acariciando uma das têmporas. - Não precisa ir. Leda se exaltou, tenho certeza que ela não irá fazer nada contra você ou qualquer um. E você não é culpada de absolutamente nada, está ouvindo? Eu não a deixarei partir! Você é meu primeiro Delírio e a tenho como... alguém...

O engasgo na voz de Dom o tornou perplexo por um segundo. O olhar preso a grama, como se visualizasse alguma coisa preciosa ou o rosto de alguém. 

- Você não pode.

- Jud... ela vai machucar a todos vocês se eu estiver aqui. - o choro era simplório e inocente, como as águas de um rio em solidão. - Eu sei. Sei que vai. Então não deixarei que mais ninguém morra por minha causa.

- Olhe, preste atenção! Sente-se... venha, isso! Escute-me! - ele a sentou ao lado dele, na grama, recostados a pedra gigante. - Quando criança eu imaginava que o meu mundo era diferente do restante. Meus pais eram meigos e me tratavam como um verdadeiro nobre. Eu tinha tudo o que queria, principalmente por ser o único filho. Lembro-me de mamãe servindo o filé de peixe e a abóbora recheada, enquanto o papai atravessava a porta, colocava o casaco no cabide e nos dava boa noite. O sorriso dela era sempre o mesmo quando o via chegar. Não era muito retraído ou um que mostrasse todos os dentes da boca, porém era o suficiente para que eu entendesse o quão prazeroso ela achava ter nós três juntos. Papai sempre vestia o mesmo casaco para ir ao trabalho na usina. Quando chegava o tecido sempre estava cheirando a pó industrial. "Vá e coloque o casaco do seu pai no cesto." ordenava a mamãe. Então eu corria até o cabide, recolhia o casaco, ainda espanando o pó que tinha nas mangas o colocava no cesto com roupas de uma semana, ainda em estado fétido. Mas o casaco era sempre lavado. Todos os dias. 

Fios negros embaraçaram o rosto de Dom. A brisa contínua só parou quando ele recobrou a história:

- Era outono e as folhas tinham começado a cair dos galhos. Em Vinslow o céu se fechava durante o dia e abria durante a tarde, mostrando que elas poderiam ser varridas pelo vento. A noite vinha com uma calmaria de dar calafrios. Não lembro exatamente o que sonhava enquanto dormia em minha cama, sozinho em meu quarto... quando despertei com o rosto do papai poucos centímetros acima do meu. "Dominus!" ele chamava. Acho que ele desistiu de me chamar novamente. Senti meus pulmões secos e minha respiração difícil. O calor estava infernal. Então vi as paredes alaranjadas e o ar rançoso a minha volta. Ele me pôs nos ombros e me levou ao corredor. Lembro que naquele dia, quando mamãe e eu fomos aos nossos quartos nos recolher, papai não havia chegado ainda. A usina tinha lhe oferecido um pouco mais para que ficasse durante uma semana duas horas mais tarde. Mas agora ali estávamos nós dois. "Mamãe!" lembro de ter gritado e logo em seguida tossido várias vezes por causa da fumaça. Queria perguntá-lo onde ela estava e o que tinha acontecido, mas um nó se fechou em meu peito e ficou ainda mais difícil de falar. Só quando atingimos a calçada foi que ele olhou fundo nos meus olhos e... "Sorria, lindinho. Está tudo bem! Vou buscar a mamãe..." disse ele, regressando lá para dentro. Chamas engoliam cada parede de nossa casa. Não consegui pensar em mais nada. Lembro que alguém, na verdade duas pessoas vieram para me recolher dali. "Estou esperando papai e mamãe.", tentei avisar. Apontei para a porta com o fogo lambendo a fachada. - Dom encarou Mobby com um olhar soturno, tristonho e rancoroso. - Nunca os vi saírem de lá. Nunca. Nem mesmo nos pesadelos que tive com o passar do tempo. Toda vez que as chamas apareciam nos sonhos, papai e mamãe pareciam sempre estarem para lá delas. Convivi com isso durante minha vida inteira. Nunca soube o que realmente aconteceu. A origem do incêndio, digo. 

- Eu sinto muito, Dom. - eram reconfortantes as palavras de Mobby naquela situação. - E o que houve com você em seguida? Não consigo pensar em nada que o fizesse feliz novamente.

- Houve algo. - ele agora tinha um sorriso belo nos lábios. - E se chamava Hiva. Era uma das mulheres que me ajudaram naquele dia do incêndio. Acolheu-me como a um filho, junto a seus seis outros. Um sétimo filho de uma doce mulher. Meus pais deram-me uma boa vida, como disse. Tínhamos uma bela casa e conforto financeiro. Hiva era apenas uma comerciante de seda, nada mais. O marido falecido não deixara-lhe nada. Mesmo assim tive a sorte de vê-la chamando-me de filho e ordenando-me a chamá-la de mãe. "Posso não ser Elena, mas serei a melhor mãe que puder." eram as palavras dela quando eu chorava por mamãe. Cresci em meio aos tecidos macios de seda que a máquina de Hida fazia. Roxos, vermelhos, amarelos... todos tão brilhantes e vivos que eu e seus filhos vivíamos nos divertindo entre eles. Quando saíamos para correr pelas ruas de Vinslow, todas as pessoas tinham uma opinião a respeito dos filhos de Hida, principalmente sobre "O filho ilegítimo de Hida". E na maioria das vezes se direcionavam mesmo a mim. "Hida deveria pôr para adoção metade dessas crianças! Deus sabe como ela precisa de dinheiro!" dizia algumas. "Quando adoecerem a pobre coitada não terá como dar-lhes remédio!" dizia outras. Porém uma vez, quando me escondia em uma esquina que dava a um bar restaurante, ouvi um homem barbudo e gordo comentar com uma mulher no balcão: "Contam que aquele peste de cabelos negros que Hida adotou é um fantasma. Que o verdadeiro filho dos Quartly morreu naquele incêndio junto a eles!". Tinha sido o maior absurdo que  já tinha ouvido em toda a minha vida. Então a resposta da mulher foi ainda mais absurda: "Ou quem sabe um demônio! Os Quartly enriqueceram do dia para a noite, é sabido! Todos de Vinslow conhecem essa história! Talvez um pacto com o Satã onde colocam o filho como garantia. Já ouvi diversas histórias sobre isso, Denis." disse ela. Ele completou com algo que me fez ficar estático e pensativo. Disse: "Demônio, é? Sei que quando essas coisas ruins se  enfurecem no corpo humano é capaz de matar a todos. E digo... se eu vir esse moleque perto de mim não me impeço de fazer uma besteira.". Então eu lembro que corri. Nunca mais retornei. Nem para aquela esquina nem para a casa de Hida. Eu era uma criança na época e aquilo me perturbou. Não queria machucar Hida, nem mesmo meus novos irmãos. Então, agora, longe de Vinslow, conheci Éder. Um homem que me conheceu ao me ver tendo minha primeira visão no chão de uma estação de trem. Ele me socorreu e levou-me a Caverna. Ele tinha acabado de se casar com Zalete. 

Mobby lembrou rapidamente de Zalete. Fora ela quem tentara negociar a paz com Jud antes do extermínio. 

- Os primeiros dias na Caverna tenho de assumir que foram horríveis. A lei dos Delírios já estava instaurada e ninguém aceitava o fato de que eu não fosse um Delíro de Éder. Ele simplesmente me encontrou, soube do meu dom e levou-me. Mas com o tempo tudo melhorou. Então quando Éder perdeu a vida por causa de uma grave doença, tentei me fortalecer dentro daquele lugar. Ele me contou, dois dias antes de morrer, ainda de cama, que tinha tido a visão da própria morte. Disse que eu não dissesse nada a Zalete, mesmo ela tendo certeza que ele melhoraria. Nós dois sabíamos que não. Então depois que ele se foi eu a contei a verdade. Não acho que ela me perdoou. Ela nunca mais foi a mesma com a morte de Éder. 

Em um momento único e ligeiro Mobby saltou em Dom e o abraçou com força. Ele apertou o corpinho frágil da garotinha que um dia vira em um porão, maltratada e prestes a ser morta por uma insana, sorriu e guardou todas as memórias de volta na caixa.

- Por favor, não vá, lindinha. - sussurrou.

Ela o devolveu no mesmo tom:

- Pode deixar. Eu não vou.

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora