25. Trajetória às cegas

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"O espírito que guia é o mesmo que causa a perdição."


As três sombras se cruzaram na esquina seguinte, convergindo a um ponto distorcido, enegrecido pelo luar. Era o quarto dia. Era a quarta noite que terminava sem êxito.

- Encontraram? - tornou a perguntar Dom, parando de frente a um estabelecimento de bebidas fechado. - Algum sinal dela?

- Não. - confessou Leda, transpirando. - Nenhum.

Eric Marbow coçou a cabeça e nada respondeu. Analisou o rosto tenso da sobrinha e do rapaz, refletindo sobre o que teria afugentado Mobby.

- Na verdade... - suas palavras surtiram um efeito imediato, fazendo Dom e Leda erguerem os olhos em sua direção com vivacidade. - necessitamos de melhores pistas. Não tem como saber para onde exatamente ela foi.

O xerife aposentado virou-se para a grande vidraça da loja, encarando o próprio reflexo, exausto e velho. Via através do brilho que há muito tinha perdido as habilidades que tinha de tomar um caso em mãos e se compadecer a resolvê-lo. Como no dia em que assumiu a frente do caso da família Shawton, e antes dessa os Leroy, os Gesly e os Merravalt. Mas agora tinha um simples caso de desaparecimento, mas se sentia tão incapaz quanto no primeiro dia que entrara para a Delegação da cidade, assumindo o posto de guarda provisório e sendo chacota de dezenas de veteranos empunhando armas de grosso calibre. Suas memórias se esvaíam por um esgoto interno, onde o chorume escorria por algum lugar inconveniente. A rapidez de pensamento nas resoluções dos casos tinha parado no tempo, agarrado outro xerife e se aproveitado para depois jogá-lo na miséria de ideias igualmente. De todo modo aquele reflexo não era Eric Marbow, mas a alma há muito saída de seu velho corpo.

Quando retornaram pela madrugada, a casa se mantinha num silêncio profano, quase ameaçador. Eram as primeiras horas do quinto dia sem Mobby e Dom se mantinha numa aflição abalada.

- Você deve comer, amigo. - disse Leda, oferecendo um sanduíche de peito de peru e um copo de leite. - Você não quer morrer antes que Mobby volte, não é?

- Por que isso aconteceu, Leda? - Um acúmulo de lágrimas parou na parte inferior dos olhos de Dom, prestes a caírem. Um brilho letal emanava da pupila. - Eu não entendo... não entendo como nos encontraram e levaram-na!

- Acha mesmo que alguém esteve aqui e levou-a? - ela pôs o copo com leite na beira da mesinha de centro e o sanduíche sobre o sofá. - Quero dizer... acho que Jud seria perfeitamente capaz disso, mas... acredito que nem na pior das hipóteses isso aconteceria.

- Então o que sugere? Que Mobby saiu por aquela porta por livre e espontânea vontade? À troco de quê? - Dominus começava a ficar nervoso com a situação. - Ela tinha a nossa proteção! Ela tinha a mim!

- Mas antes de você ela tinha a mãe, Dom! O que aconteceu na Caverna com Alesh foi algo monstruoso e não acho que uma criança esqueceria tão fácil isso! 

Um barulho na cozinha. Talheres. Eric Marbow fazia sua vitamina noturna, escutando tudo o que falavam na sala.

- Isso é ridículo! Impossível! Mobby é uma menina! Inocente e pura! Ela não sairia naquela tempestade, no meio da noite... - Dom se inclinou para a frente, levando as mãos à cabeça.

- Ela irá aparecer, Dom. Ou se a levaram, quem quer que seja, irá nos contatar. Sabemos que Jud tem conhecimento que Mobby é sua sobrinha, acho que por mais perversa que seja, não faria qualquer coisa para matar a menina. Não agora.

- ELA É MEU DELÍRIO! - gritou Dom, erguendo-se depressa no sofá, batendo na mesinha e levando o copo ao chão. O leite derramou sobre as botas de Leda e o carpete. - Cinco dias se passaram! Cinco dias! Eu não consigo mais viver sem aquela garota ao meu lado! Simplesmente não consigo porque agora ela faz parte de mim! Eu daria a minha vida para salvá-la! E NINGUÉM se atreverá a encostar um dedo em Mobby, ou eu matarei até o último desses canalhas! Sem piedade ou misericórdia! Todos!

Dom se enfiou no corredor e sumiu no breu. Leda tentou segui-lo, ainda com os pés encharcados e grudentos do leite, mas um braço a impediu.

- Deixe-o. - disse, tranquilamente, o tio. - Ele está transtornado. Há dias ele não dorme, então precisa descansar. Deveríamos fazer o mesmo. Amanhã retornamos as buscas.

- Eu só não queria me sentir tão culpada, às vezes. - Leda recolheu o copo do carpete, vendo que estava levemente trincado com a queda. - Talvez um pouco menos dolorida em relação ao sentimento das outras pessoas.

- Oh, querida. Não pense que se pode abraçar o mundo todo com dois braços humanos. Abrace com o coração e isso basta! Saiba que o seu gesto de querer proteger aquela menina é mais valioso do que qualquer deslize. - ele tomou a mão da sobrinha entre as dele. - Agora se permita descansar. Ou amanhã teremos falhas na procura.

Leda virou-se e foi direto ao quarto, enquanto o tio recolhia o copo de suas mãos.


* * *

O ambiente era perfeito para se cometer um suicídio e aquele pensamento era recorrente na cabeça de Dom, enquanto ele ia de um lado a outro.

Todo visionário quando se distancia ou se perde de seu Delírio é fatalmente doloroso. É como uma borboleta perder suas asas e não mais atingir os céus; como um peixe perder as nadadeiras e ficar a mercê dos perigos marinhos; como os olhos se perderem na vastidão da escuridão, sem saber aonde ir ou que decisões tomar. E era exatamente como Dom estava se sentindo.

Durante o primeiro dia de buscas o seu vigor era incomparável. Todas as suas forças foram o suficiente para rodar todo o perímetro regional em busca de algum sinal de Mobby. O segundo dia o vigor continuou à toda. E nesse momento sua parte investigativa aflorou, rodando pelos centros e pátios, buscando cada detalhe que viesse a dá-lo o paradeiro da menina. O terceiro dia foi quando o sono entrelaçou-se a exaustão e seus músculos tinham anseio pelo descanso, porém sua mente estava mais disposta do que nunca. O quarto dia veio sedento, raiando o sol lá fora e os olhos de Dom nada de se fecharem. A tortura duraria mais quanto tempo? Dois, três, quatro dias? Semanas? Meses...

Deitou-se, o rosto rente ao teto, os olhos irrequietos passeando de um lado a outro. Nesse momento lembrou-se de um trecho de uma história contada por Éder, um dia depois de tê-lo levado à Caverna. Estava fresca em sua memória por que por duas outras vezes Zalete contara, tal qual como o marido.

Dom começou a refletir sobre. Imprimindo a história no pensamento ao ser puxada na memória. Começou a recitar para si mesmo o começo, num sussurro singular de quem está prestes a enfrentar a amargura da solidão:

- "O homem pardo, cheio de anéis nos dedos, viu o seu Delírio morrer. Então, sem duvidar do céu ou do inferno, tirou a própria vida. E é assim que começa essa história".



Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora