10. Ultimato

20 3 0
                                    

"Há uma nuvem entre o sol da vida que escurece a visão de qualquer coração."

Refletindo sob um galho folgado da árvore maior uma gotícula de água era tudo o que as folhas podiam sentir no momento. O vento corrente sussurrava pelas bétulas até se estender num manto contínuo e prazeroso na pele de quem estava ao redor do tronco. Mobby, quase vendo novamente o brilho da luz da manhã aquecer suas pálpebras, se remexeu no colo da mãe. Era quente como havia sido um dia. Era aconchegante como um dia se lembrara. Era perturbadoramente delicioso sentir cada toque nos fios dourados novamente e o respirar a frente do rosto, o hálito de mãe que só Alesh tinha. Tudo aqueceu seu coração como um cobertor num dia gélido. 

Alesh Alliot continuou a acariciar a pele macia de Mobby. Passara a noite inteira encarando o rostinho da filha, percorrendo cada centímetro de derme presente acima dos ossos pequenos. Os dias que se passaram fora como uma década. Ao acordar e não ver o rostinho da filha, apenas o sangue escorrendo pelos fios do cabelo e a dor cruzar ondulante de um lado a outro do crânio, Alesh lutou contra as próprias fraquezas e o espírito da morte, lutou para encontrar a luz no final do túnel que revelaria que Mobby estava bem, ali, ao seu lado. 

(Não... não é bem assim, Alesh... sua filha... ela não está...)

Mobby abriu os olhos e viu a calmaria no olhar da mãe. Viu a fortaleza que podia se apegar e agarrar-se a teia de carinho que era vista atrás da íris azul de Alesh. Viu os tiros que ainda explodiam sua mente, mesmo agora tão longe, cessarem e virarem um gotejar tranquilo. Viu a cicatriz em forma de cruz na perna desaparecer e a imagem de Jud Primoth cair por terra. Era como se nunca a tivesse conhecido. Era como se nunca tivesse existido qualquer visão sobre a mulher. E isso era o melhor. E isso era o mais fantástico de tudo.

Enquanto as duas se abraçavam, recostadas ao tronco de três metros de largura da árvore, o restante conversava ou se agitava ali por perto. Morga Evenen conversava com o seu Delírio Patrus, que mantinha por perto um rapaz introspectivo e cabelos lisos acima dos olhos. Provavelmente era o Delírio de Patrus quando ele teve a visão na cozinha de Wendy. Logo ao lado de um arbusto de flores brancas Érika fazia cara feia para as montanhas, os braços cruzados numa deprimente solidão. Wonner e Pasmie tinham deixado de discutir como normalmente faziam para chorarem um no ombro do outro pela perda de Wendy, enquanto Dom os acalmava como um pai que tenta explicar aos filhos o curso cruel da vida. 

- Eu não sei o que eu fiz. - as palavras de Mobby riscaram o ar e fizeram Alesh despertar de um cochilo rápido. - Tudo culpa minha... Jud... ela é tão cruel, eu... nunca imaginaria que algo assim poderia acontecer. Os moradores da Caverna... eles morreram, mamãe?

Poucas vezes Alesh transmitira um olhar de sofreguidão à filha, um olhar que fere como uma lâmina perfurando o coração. Mas ela havia visto tudo. 

- Não pense nisso agora, querida. Eu sei que tudo se resolverá da melhor forma. Todos os que estão conosco, aqui... - Alesh olhou ao redor e Mobby seguiu sua percepção, notando não mais que quinze caverneiros no gramado. - Sabem do que Jud Primoth é capaz. 

- Talvez... se eu não tivesse a visão... eles... - as lágrimas de Mobby eram claras e pesadas como um rio morto. Desciam por suas bochechas rosadas como se rasgassem cada milímetro da pele. 

- Querida... você não teve culpa! Talvez nem eu, que a fui socorrer. Mas a vida é sábia e mostra onde exatamente está o mal. E tenha certeza, filha, que não está presente aqui, agora. Acabamos de deixá-lo, e infelizmente para isso um bem teve de ser sacrificado. - Alesh contornava o rosto de Mobby com as unhas mal pintadas em dedos calosos. - Você não é má, minha querida... estamos bem, você não é o que ela diz que você é... não há mal em nenhum de nós aqui, agora...

Mobby tentou relaxar, mas o modo como uma garota a olhava de alguma forma a mostrou o mal novamente. 

* * *

- Tire-a já daqui, Dom, ou eu a matarei! - a garota loira, magra e portando um físico de boxeadora, se dirigia a Mobby enquanto gritava com Dom. - Ela trouxe a desgraça para a Caverna, trouxe a mãe que é uma Mórbida! E não aceitamos ninguém entrar no nosso recinto a não ser um Delírio! Aquela Mórbida - a garota boxeadora apontava o dedo grosso para Alesh, que se encolhia a um canto da árvore com Mobby às suas costas. - trouxe os seres mais repugnantes que já encontramos! Eu vi Gasper ser morto pelas mãos de um deles e, pelos infernos, ninguém sabe o que estou sentindo agora!

- Ela é só uma criança, Leda. - Dom tentou acalmar a mulher, que tinha sua mesma altura e podia muito bem acertá-lo com um soco que o apagaria. - E ela não tem culpa daquelas pessoas aparecerem na Caverna. Eu as levei até lá!

- Você também tem sua parcela de culpa, imbecil! Não estou questionando isso! - Leda chegou a trinta centímetros do nariz adunco de Dom. Ele a olhou como se se preparasse para o primeiro golpe. - O fato é que eu sei que a pirralha o convenceu a sair da Caverna e procurar pela mãe! Eu sei que você é o tipo de cara que faria isso, principalmente por ordem do seu Delírio!

- Você está certa, Leda! Foi exatamente o que ocorreu! - Dom não tinha medo de enfrentar ou questionar a mulher. - Mas independente de qualquer coisa, nem eu, muito menos Mobby, temos culpa do que aconteceu ao seu irmão ou a qualquer um que morreu na Caverna.

- Culpa? - Leda se afastou, dando risinhos de escárnio. - Não me venha pôr uma palavra no lugar da outra, Dom! O que você fez foi assassinato, meu caro! Levar um bando de ordinários religiosos, que você sabe que dentre uma sociedade egoísta como a nossa são os que mais tem horror a nós, para dentro de um recinto como a Caverna! Aquela mulher é horrível! Talvez a pior pessoa que já vi em minha vida! Ela destruiu o nosso lar, Dom, não é possível que você não tenha um pouco de compaixão...

- Não ponha palavras em minha boca! - Dom enfrentava Leda de frente, não perdendo a compostura e nem a dor que ainda sentia pelos que ele perdeu. - O nosso dom nos transforma em miseráveis opostos a sociedade! Uma hora ou outra isso aconteceria, talvez não dessa forma, mas...

- Cala a sua boca ordinária, Dom! - Leda segurou no colarinho de Dom e o trouxe bem para perto de seu rosto, de tal forma que o nariz dele encostou-se ao dela. - Cala essa sua boca de merda se não quer piorar a sua situação! Eu perdi o meu irmão Gasper...

- E EU PERDI A TIA WENDY! - o grito de Dom ecoou pelo espaço inteiro, fazendo Leda o soltar de imediato. Não por medo, mas para preservar os ouvidos. - A sua dor é tão grande quanto a minha! Wendy foi como uma mãe para mim, desde o começo! Todos nós tivemos alguém que amamos perdido naquele cenário trágico que deixamos para trás. Se quer culpar alguém culpe a si mesma e não a mim!

Quando Dom terminou de dizer o que sentia, sem sair um minuto da frente de Alesh e Mobby (como um escudo), todo o silêncio instaurado no ar por aqueles que testemunhavam a discussão abraçou-os num torpor tenso. Então o dedo grosso de Leda voltou a aparecer:

- Cuide de despachar seu Délirio e a Mórbida-mãe para longe antes que eu retorne. - o silêncio que antes pesava no ambiente agora cruzou como uma espada de gelo o peito de todos. - Do contrário, Dom, você será o primeiro que eu arrancarei a cabeça! 

Leda cruzou o gramado e as árvores menores situadas mais abaixo. O desnível ultrapassado pelas barreiras de vegetais e o rio ao norte deram uma visão superficial do corpo de Leda se distanciando. 

Dom olhou para trás, nos olhos lacrimejantes de Mobby. Ela esperou por um abraço confortável e protetor dele ou uma palavra amiga. Mas tudo que ocorreu foi ele dar meia volta e se isolar para lá das rochas. 

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora