16. Celas e divagações

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"É no obscuro da mente que se encontra o nosso monstro. Voraz, com sede dos nossos medos e armado do restante de coragem que nos pertence."

Em uma das mãos ele tinha o pingente que um dia fora da irmã. A pedra brilhava num opaco cinza, revestida de bronze em quatro cores. Na outra arranhava a própria perna, sentia a dor passando pelos ossos, pele e atingir os dedos que há pouco portaram uma arma. 

Eu atirei... eu atirei... eu atirei...

A reverberação das palavras no espaço furtivo da mente lhe pareceu assustadora e rasteira. Quanto mais repetia as palavras entredentes, num assobio trêmulo do escuro, mais sentia o pingente de pedra esquentar seus dedos ainda sujos de pólvora. 

Estavam todos calados agora e o máximo que se podia ouvir era os suspiros nervosos e o arraste dos pés no chão frio nas celas vizinhas. Patrus demorou alguns minutos para entender onde estava, se realmente aquele lugar pertencia à Caverna. E logo descobriu que sim. As celas. Era onde os "brigões" eram levados caso procurassem confusão na família. Trancados por uma noite nas masmorras, como diziam. Ele lembrava de estar ali uma vez, não há muito tempo, mas nunca experimentara estar dentro de uma daquelas celas. E agora, num rito quase doentio, sentia como um espírito maligno sentado ao seu lado alisasse sua cabeça lisa, os dedos pálidos caindo sobre a derme provocando arrepios. (Você sabe o que fez, Patrus... sabe! ora... sabe sim, sabe sim, sabe sim, sabe sim...). 

Àquela altura ele já deveria estar dormindo. Como imaginava que os outros estariam. Cada um deles em sua cela, tendo pesadelos com a cena anteriormente protagonizada por ele na entrada da Caverna. Seus olhos nunca pregariam novamente. Nunca veriam os sonhos que costumava ter, tampouco a proeza que tinha no prazer de simplesmente dormir. O espírito o afogava cada vez mais num complexo de culpa, numa mágoa interminável.

Voltem... o tempo... eu quero fazer diferente... quero matar a vagabunda Primoth... eu apertaria o gatilho cem vezes contra o rosto dela! Me levem de volta lá... me levem... me levem... eu não queria... juro que não... queria...

O choro pareceu seco, sem emoção, mas explodiu cada milímetro de dor que o corroía. Mas tudo enegreceu-se, e assim como o tédio toma o homem solitário, a depressividade o agarrou mansamente. Ele arrastou-se pelo chão frio de sua cela (inútil... asno...), as unhas perfurando as pedras cortantes e raspando a pele dos dedos (não há dor... dor...), o joelho tinha se ferido duas horas atrás quando foi jogado ali dentro por Ulisses, o grandalhão dois. Ele ainda ouvia o seu assobio no corredor do cárcere. Era frio como a lâmina de um fantasma o degolando. Era profundo como a bala que corre um coração inocente.

Eu matei... eu a matei... não quis... juro que não quis... me obrigaram... tive que... escolher...

Agora era tarde. A culpa era apenas uma consequência irremediável. 

"Chore, Patrus" o espírito atormentador o dizia, abraçado a ele em sua cela gélida. "Chore pelos seus companheiros em suas celas solitárias. Você os pôs lá. Prove do mundo que nos cerca. Chore pela perda de sua inocência, chore pela perca das pessoas que o amavam, chore pelo sol que foi embora e pelas nuvens que enegreceram. Chore pelo padre que morreu e não rezará para sua salvação, chore pelo mal que o consome agora e que mastiga o resto de bem que há em você como uma carne pútrida. Chore por você, chore por mim, chore pelo corpo da mãe da menina que agora repousa nas covas fundas. Chore. Chore."

O grito saltou de Patrus como um apelo extremo. 

"Chore pelo corpo da mãe da menina que agora repousa nas covas fundas..."

A risada do espírito ficou cada vez mais longe. Tão distante quanto suas forças. 

* * *

Era a única cela especial, aquela. Tinha vários candelabros e uma dúzia de outras pequenas luzes. Havia um certo temor no ambiente, causando não pelo puro frio do lugar, mas pelos passos familiares de Jud Primoth. 

- Ele é um belo conquistador, sim ele é. Conquistou-me! O demônio sabe fazer um bom serviço, o que você acha, heim? - Jud encarou o rosto da menina, que abria aos poucos as pupilas. 

Mobby balançou em um pesadelo sem fim. O balanço ia e vinha, como um pêndulo que pulsa nos dedos da morte. E por um segundo não quis acreditar que tudo tinha retornado. 

- Ela está despertando... - Jud estava maravilhada. - Oh, Deus, o Senhor vê? Trouxe de volta o presentinho que escapou por minhas mãos. O Senhor sabe como lutei para manter esse pequeno satã ao meu controle! Mas infelizmente não obtive êxito! Mas agora... agora tudo está ao meu favor! - Ela tinha um largo sorriso nos lábios. - Ela está... despertando...

Os olhos azulados de Mobby abriram por completo e o único rosto que pôde ver era o de Jud Primoth. Ela tinha os braços novamente estendidos para cima, amarrados a um gancho. A mesma posição de quando fora torturada na primeira vez. Ambas estavam sozinhas agora, mas não parecia o porão da casa. Mobby reconheceu como sendo um dos quartos da Caverna, mas agora como um toque extravagante de Jud. 

- Dom... Leda...

- O quê? - uma risada explodiu no ar. Jud tinha uma maneira peculiar de extravasar sentimentos quando estava disposta. - Oh, não acredito... demônios sabem ser cruéis a todo momento! A pequenina satã poderia ter perguntado primeiro pela mamãe satã, não é mesmo? Mas... o que aconteceu? Vocês duas me pareciam tão próximas da primeira vez que as visitei! Não é possível que agora... estou tão desapontada, esperava um pouco de compaixão, mesmo vindo de coisas ruins como vocês!

- Onde está minha mamãe?

- Como? Ah, então agora você quer saber dela, querida? Ok... talvez eu queira esperar um pouco mais e estender minha diversão! Vamos conversar sobre outras coisas, que tal?

- Onde está minha mamãe? - perguntou novamente, dessa vez com mais ênfase em sua exigência.

Jud Primoth chegou depressa a frente da garota, apertou sua mandíbula com a mão ossuda. Os lábios de Mobby se projetaram para frente, saliva caía pelo canto da boca. 

- Quer mesmo ter essa resposta? - Jud deu o direito de Mobby responder a pergunta, mas nada a felicitou mais do que dizer pausadamente o que tinha a dizer: - Ela se foi, coisa ruim. E sabe... por consideração a você, já que somos bem próximas agora, não é?... a deixei descansar em um seleto lugar de paz. 

Jud soltou a mandíbula da menina e seus dedos ficaram marcados na bochecha rosada de Mobby. Os seus olhinhos começaram a brotar lágrimas.

- Eu não acredito em você! 

Outra risada, dessa vez crescente, surgiu. 

- É mentira! Mentira! - gritou Mobby, chorando desesperadamente. De repente se remexeu e balançou para frente e para trás. - Mentira! É mentira!

A risada de Jud Primoth foi interrompida por um golpe certeiro na bochecha esquerda. Mobby havia ganhado impulso o suficiente para estender sua perna para o alto de modo a acertar com o pé no rosto da mulher. Jud encontrou o chão com um breve gemido. 

- Isso... não foi nada... - Jud ergueu-se do chão, passando a língua na gota de sangue que brotava do canto do lábio. - perto do que eu vi acontecer a sua preciosa mãe satanista. 

Jud Primoth cruzou a porta e sua sombra marcou o corredor. 

Mobby chorou até ser tomada por um sono anestésico. 

Despertou no meio da noite com um barulho seco atravessando a porta. 

Jud...

Era ela retornando. Mobby ainda sentia o impacto do seu pé no rosto da mulher. Nada a impediria de fazer o mesmo. Então a mulher cruzou a porta, virando-se de costas para fechar a maçaneta. 

Mobby não sabia se era o sono profundo ou a dor de cabeça que a tomava, mas Jud estava bem maior. Músculos... a mulher tinha a mesma roupa das fiéis do grupo. Não era Jud Primoth, e Mobby notou isso logo em seguida. E mesmo com o cabelo preso, a saia longa e a camisa abotoada do meio do pescoço até os pulsos, ela soube quem seria. 

O barulho do trinco fechando e a mulher virou-se para Mobby. 

- Não temos muito tempo. - Leda sorriu de forma apreensiva.

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora