26. Estratégia de prisioneiros

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"Às vezes é do desespero que nasce a maior força do mundo."


Ulisses cantarolava The best of me, entre as paredes rochosas e úmidas. A canção tinha surgido no auge da década de trinta, da boca de um camponês que perdera a amante. Como uma embalagem frágil embaixo de seu braço, Morga se remexia, tremia por várias vezes, não suportando mais a fome mastigá-la. Tinha se passado cinco dias desde que fora trancafiado ali, e sinceramente, Ulisses sentia amargamente a dor de ser um deles. Mais do que isso! Sentia o mal que Jud e sua corja causava, e se condenou por fazer por tanto tempo parte disso.

Provavelmente alguns deles já estavam mortos nas outras celas. Apodrecidos como um pedaço de carne inútil ou vísceras. A fome, a sede... os engoliram de maneira impiedosa. Ele lembrava que há dois dias Percyval passara pelas celas distribuindo um tipo de ensopado de legumes, que despejou no chão gelado. O barulho de muitos deles se atirando no chão e pondo tudo garganta abaixo era assustador. Quando enfim o guarda-costas e o mais novo carcereiro chegou a frente de sua cela, tornou a dar o olhar triunfal de orgulho e despejou o ensopado bem perto da grade. Ulisses viu Morga se revirar e arrastar a língua pelo solo gélido até que não restasse mais nenhuma erva. Ele sentira um leve cheiro de podridão vindo da comida, mas do que isso importava? O monstro da fome é sagaz e ignora tal detalhe.

- Eu não aguento mais isso. - Ulisses levou o pingente de cruz até a boca e mordeu. O gosto de ferro desceu por sua garganta, que ansiava por comida. - Eu tenho que fazer algo para impedir que isso se torne ainda mais grave. Ou todos nós morreremos aqui como pedaços de merda escorrendo pelo esgoto.

- E como pensa em fazer isso? - não era Morga quem falava. Era qualquer outra entidade presa ao seu corpo que tinha um pouco mais de esperança.

A audácia tomada pela força restante que tinha ajudou no grito de Ulisses:

- PERCYVAL! - o som ecoou pelo corredor, se chocando nas grades em ondas. - PERCYVAL!

- A sua sorte... - o grandalhão apareceu a frente da alcova, o rosto singular perante os prisioneiros sofríveis. - era que eu tinha dado uma breve pausa no meu cochilo. Ou você estaria morto, traidor!

- Por que está fazendo isso, Percy? - o tom amigável em sua voz era proposital.

- Eu sigo a Deus. Sigo a Jud e a Simon...

- A quem? - o último nome surgiu de forma desconhecida aos ouvidos de Ulisses, que franziu a testa, não lembrando de qualquer outro membro da equipe com esse nome.

- Não se preocupe. Você o conhecerá em breve! - o sorriso em seus lábios era torturante, mortalmente frio. - E será um completo desprazer conhecê-lo! Diria até que você o amará assim como ama Jud. - a gargalhada foi espontânea.

- Eu... só quero entregar-lhe... - Ulisses tocou no cordão, sentindo o pingente entre os dedos grandes. - Isso.

- Oh, sim. Acho bem adequado que faça isso! Você não é mais um de nós! - Percyval enfiou a mão entre as grades para buscar o colar que Ulisses segurava.

O momento seguinte surgiu num rompante, num reflexo tão cruelmente calculado que Morga assustou-se ao seu canto e manteve os olhos bem abertos a situação. Ulisses tomara o pulso de Percyval com as duas mãos e puxara com tanta força que uma marca arroxeada surgiu de imediato na cabeça do guarda-costas quando a testa se chocou contra a grade, o ferro entortando-se irreparavelmente.

- O que... - Morga ainda estava bastante angustiada, sem entender a situação.

Ulisses esticou a mão e tomou as chaves do bolso de Percyval, enquanto o grandalhão se mantinha desacordado ao lado do local onde o corpo de Stephen havia caído com um tiro no crânio.

O barulho da porta se abrindo foi um alívio, mas Morga estava mais do que insegura quanto a isso. Da última vez que ela saiu daquela cela o amigo havia morrido, ela não queria ser a próxima. Saiu apoiando-se no braço do carcereiro, apertando cada músculo compacto do membro. De certa forma Morga sentiu que estava mais do que protegida.

- Tome... - Ulisses ofereceu a chave a ela. - Comece a abrir o restante. Guardarei a entrada.

Morga ficou trêmula de instante, paralisada no mesmo lugar encarando a chave. Não sabia qual cela abrir primeiro. Ulisses já estava parado na entrada, bisbilhotando pelo corredor que dava ao perímetro ligado ao pátio. Uma sombra se ergueu do lado direito. Talvez duas...

- Pare... - disse Ulisses a Morga antes que ela enfiasse a chave na fechadura que abriria a cela de Érika.

O momento se tornou propício para um desmoronar seguinte. Érika se juntou às barras de ferro da grade, olhando fundo nos olhos de Morga. Érika continuava linda, como sempre fora. O negro de sua pele estava mais pálido, mas nunca deixava o brilho suave.

- Morg... - a voz de Érika se arrastou e quase não chegou aos ouvidos de Morga. - Me tire daqui...

- Morga! - chamou novamente Ulisses, apreensivo com as duas pessoas vindo pelo corredor. - Se não sairmos agora, morreremos. Está ouvindo? Morreremos!

Os olhos da garota se encontraram com os de Érika, que começavam a lacrimejar.

- Eu prometo... - ela tocou os dedos de Érika nas grades, acariciando. - Que eu voltarei para tirar todos vocês daqui. Eu prometo!

E com um último afago no mindinho, Morga partiu pelo corredor do cárcere, chegando aos braços de Ulisses, que a pôs nos ombros e, se esquivando para o corredor seguinte, conseguiu esquivar-se de qualquer perigo iminente. A tensão só terminaria dez minutos depois, quando viram finalmente a lua abraçada às nuvens no céu extenso.


* * *

- Isso não pode estar acontecendo!

A fúria de Jud era notável, enquanto Percyval ainda se erguia do chão, a cabeça explodindo em movimentos rotatórios.

- Parece que um deles fugiu. - Simon encarou a cela aberta, o olhar passeando por cada pedaço de pedra do local.

- Na verdade, dois deles. - rugiu Jud. - Mas eles não devem ter ido tão longe. Darei um jeito de buscá-los, nem que eles tenham voltado ao inferno!

Então a mulher se ajoelhou com precisão no chão do corredor e tomou o grandalhão pelo colarinho.

- Você só tinha uma tarefa, idiota! Uma só! E nem isso conseguiu efetivar? Que tipo de segurança é você? Deus está desapontado com você, Percyval! Sua lista de pendências com o Senhor está enegrecendo! Levanta, vamos! Levanta! - Jud o puxou com ferocidade, mesmo tendo metade do tamanho do homem. - Agora some da minha frente!

Percyval saiu aos tropeços pelo corredor como um autêntico gigante bêbado.

- Alguma ideia de onde eles possam ter ido? - perguntou Simon.

- Darei conta disso. - respondeu Jud. - Com você do meu lado, conseguiremos agradar a Deus mais do que qualquer outra pessoa no mundo!

- Estou aqui para servi-lo. - ele se aproximou ainda mais de Jud, os corpos fluindo numa conexão singular. - Não tenha dúvidas! Agora... tenho um comunicado a fazer. Junte a todos no salão.

- Adoro espírito de liderança! Você é igualzinho ao Padre Jeff. Talvez bem melhor! - Jud olhou bem de cima a baixo o corpo de Simon, os olhos tomados de libido. Suas mãos acariciaram o peito do homem e subiram até o pescoço. - E o que tem a dizê-los?

- Deus me enviou aqui com um propósito contra o mal. - Simon escolhia as palavras com esmero. - Com a fuga de um deles... acho que as coisas tem que mudar um pouco por aqui, não acha?

Jud tinha os olhos brilhantes.

- Isso não pode mais acontecer. Eu estou aqui agora. O mal não perdurará mais.

No âmago, nas entranhas, surgiu-lhe algo glorioso e Jud sentiu o prazer em estar perto de um homem como Simon. Algo efervescente cresceu-lhe nas veias e sugou-lhe a capacidade de controle. Ela não tinha mais dúvidas que Simon era Deus na terra. Enquanto ele se distanciava, Jud o encarou como se nada de ruim tivesse acontecido um minuto atrás.


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