"Temo o que é divino, e nada mais. Tudo que não seja isso é diabólico."
O chá...
Ela tinha pensado em absorver o pensamento de que a faria bem. Um bom chá, aliás, faz bem a quem está desnutrido de cansaço. Alesh pegou a xícara nas mãos, levou aos lábios o líquido quente e bebericou suavemente como quem teme que os lábios queimem. No mesmo momento uma nuvem de vapor se dissipou no ar saída do recipiente.
Não era a primeira vez que via uma manhã em resplendor. Tinha presenciado aquela cena pela vidraça da janela um dia antes de Ernesto Alliot partir. O marido tinha certa perseverança em seguir o sonho na aeronáutica. Um voo de teste mal planejado fez com que a aeronave despencasse no mar. Um dia depois a manhã tinha nascido cinzenta, com nuvens rubras e com uma ventania gelada.
Nem bem tinha terminado o chá, seus pés pareciam mais descansados. Alesh subiu para ver como passava a filha. Ela sabia do perigo que era o silêncio na casa. Sim, ela sabia. Subiu a escada passando a mão no cabelo desgrenhado e chamou pela filha uma vez:
- Mobby! Querida! Onde você está?
Em razão do silêncio que se instaurou seguido a pergunta, Alesh apressou os passos ao farejar que algo estava errado. Subiu o mais rápido que pôde os últimos degraus, se apoiando no corrimão de madeira para impulsionar o corpo adiante.
- Mobby! - chamou mais uma vez, sua voz um deslize de medo e angústia.
A cena que viu segundos depois era a mesma que a atormentava há quatro anos, que fora quando as visões da filha começaram: Mobby deitada ao pé da cama, estática, os olhos redondos e celestiais vidrados no teto, as mãos em dedos revirados e os lábios levemente mexendo ao pronunciar palavras em baixo som.
Alesh jogou-se ao chão, apoiando a cabeça da filha na mão e levando o ouvido ao lábio da menina. Tentou, atentamente, escutar o que seria daquela vez. Ouviu ruídos pronunciados de forma medonha, algo que certamente nunca ouvira. Então vieram palavras mais esclarecedoras:
- Rua... Davengarden... 13... ca... casa... ama... re... la... Jud... Pri... mot... th... sui... suici... dar...
Alesh tentou absorver o que Mobby dizia, associando aquelas informações à sua memória. Será que conhecia alguma Jud Primoth?
Diante de tudo ela sabia verdadeiramente de apenas de uma coisa: tinha de correr até a Davengarden 13 e fazer o que sempre fez. Sabia que Mobby iria ficar bem, como todas as vezes acontecera.
* * *
Disponibilizados diante de uma fachada cor de mel, jarros suspensos balançavam aqui e ali com as orquídeas e cravos plantados ali. Alesh olhou para aquilo como quem visualiza um vulcão prestes a explodir no seu rosto. A vidraça era neutra, então apoiou as duas mãos, uma de cada lado do rosto, e encostou o nariz no vidro, olhando dentro da casa. Não via nada.
Jud Primoth...
- Jud! Jud! - gritou Alesh e não se importava que quem quer que passasse por ali a visse daquela forma.
Houve um tempo em que ela pensara que salvando todas aquelas vidas das visões da filha, iria acabar com tudo aquilo. Mobby viveria em paz felizmente. E ela também.
Alesh forçou a maçaneta e se surpreendeu ao perceber que a porta estava aberta. Entrou sem a menor vontade de pedir licença e procurou por qualquer sinal de que alguém estivesse por ali. A saleta tinha duas poltronas de frente a uma lareira velha. O cheiro de cinzas da noite anterior ainda persistia no ambiente. Uma TV de vinte polegadas antiga demais sobre uma escrivaninha de madeira improvisada e um rádio com a antena ainda elevada um metro e inclinada, pendendo na janela, foram as poucas coisas que Alesh pôde notar realmente no lugar. Passou pela cozinha e viu moscas zumbindo sobre uma torta. Uma faca encravada na massa esbranquiçada. A casa era pequena, então assim como achar Jud Primoth perguntando a alguém que fumava na Rua Davengarden 13, encontrá-la realmente seria mole. Alesh empurrou a porta semiaberta do quarto e se espantou com o que viu: uma mulher de uns quarenta anos de pé sobre uma cadeira, o vestido longo mexendo com a brisa que entrava pela janela. Nas mãos segurava a bíblia aberta em uma página que lia em silêncio, um terço entrelaçado nos dedos magros e ossudos, e uma corda envolta do pescoço, amarrada ao ferro de um ventilador de teto.
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Olhos Trágicos
ParanormalEm uma pequena cidade de nome Little Joanesburg não é comum se ver comentar muito sobre catástrofes ou problemas sociais. Com uma bela igreja no centro da cidade, lojas de utensílios maquinais e diversidades sendo frequentadas todos os dias, uma pr...