"Há um caminho para o imperdoável. Cruel e devastador. Todos passamos por ele."
A fome é um monstro. É um dos vírus que se apodera de uma guerra e corrói a raça humana. É um inimigo impossível de vencer se não por comida. Destroça pouco a pouco, rasga cada parte sua e mastiga lentamente. Nunca para. Até que você encontre o seio da morte para deitar-se. Então você comerá das nuvens e beberá do céu, enquanto olha o monstro de cima, vagando pela terra carregando as vísceras já frias de seu estômago.
Primeiro a fome. Depois a loucura.
A loucura é um segundo monstro. Uns acreditam ser mais severo que a fome, outros discordam completamente. O fato é que poucos são capazes de questioná-la. Não há um homem na terra que tenha se beneficiado da loucura, nem a tomado como um prazer incomensurável. É o estágio do ser mais retrógrado, facínora e leviano. É o espírito vestido de sinos. Todos embalando ao mesmo tempo. Para cá e para lá. O tempo todo. Até que sua sanidade se esmague contra seu crânio como uma casca explodindo contra a parede.
Em todas aquelas celas tinham monstros. A fome e a loucura. Dois espíritos dançando no centro de cada alcova. Morga cantava uma canção chamada "E as luzes foram embora". Tinha aprendido durante o tempo que passou na hospedaria de Evert, um homem solitário de setenta e cinco anos. Uma velha a cantava, enquanto segurava uma caneca com três a quatro moedas. A canção saía num sussurro harmonioso dos lábios de Morga:
"Descanse e não chore,
As sombras estão vindo,
Nunca irão assustá-lo
Se você estiver dormindo.
As luzes estão longe, doçura,
Como belos viajantes,
Para lá, bem distante da montanha,
Numa horda de amantes.
Não mais lhe direi,
Agora durma bem,
As sombras estão me levando,
E vão levá-lo também."
- É uma bela canção... - as palavras graves assustaram Morga. Ela saiu de perto das grades, onde Ulisses estava sentado ao chão, a cabeça apoiada na parede de pedras. - Eu a ouvi uma vez. Meu tio a cantou para mim quando criança. Confesso que não lembrava mais. Você despertou essa lembrança.
- Como... - Morga tinha a voz cansada por não ter pousado um minuto a cabeça e dormido. O zunido na cabeça era constante. - Você chegou até Jud Primoth?
Como se a resposta fosse o pino de uma granada pronto para ser arrancado se ele desse com a língua nos dentes, Ulisses preferiu silenciar por um tempo. Assobiou para o ar, escutando gemidos vindos das celas. A fome e a loucura continuavam a dançar nas alcovas.
- Gedra. - pela primeira vez Morga ouviu um tom de emoção na voz do carcereiro grandalhão. E tentou ouvir: - Não havia outra mulher no mundo que pudesse me fazer feliz. Eu a conheci na Embhos, no nono ano escolar. Ela me defendeu quando um grupo de alunos, que tinha Gui Ebehag como líder, me cercou. Eu estava inofensivo, com medo. Até Gedra aparecer. "Deixem-no!" ela disse. Foi o suficiente para que se afastassem rindo de mim. Gui ria duas vezes mais. Nunca troquei qualquer palavra com ela até o fim do ano escolar, quando ela me levou para os jardins da instituição. Eu sorria de tudo o que ela dizia. Eu gostava do modo como ela falava e enfrentava tudo. A delicadeza no tom de voz. O jeito que levava o cabelo para o ombro esquerdo quando prestava atenção no que eu contava. Foi então que percebi... - as luz do lampião tremulava no alto do corredor. Rústica. - Que estava apaixonado. E tudo ficou mais difícil. Minhas palavras se trancafiaram no meu peito de uma forma devastadora. Eu não conseguia dizê-la o que realmente sentia. Até que chegou a primavera e ela teve que partir. Me surpreendi quando suas lágrimas foram mais derramadas que as minhas. Quando o seu abraço foi mais forte que o meu. E quando seu beijo foi mais corajoso que o meu. - Ulisses olhou de lado, no fundo dos olhos de Morga, recostada a grade, ouvindo atentamente. - Nesse momento eu tive que expor o que eu sentia. O beijo... foi a chave que eu precisei para destrancar cada palavra de dentro de mim. Mas ela partiu. Sim, ela se foi.
- Não a viu mais? Nenhuma vez? - perguntou curiosamente Morga.
- Sim. Ela retornou algumas semanas depois. Nunca me disse o motivo, apesar de eu ter descoberto. - Ulisses apertou por um segundo o bastão elétrico. Então retornou a história: - Ela voltou e aceitou minha proposta. Ficamos juntos. E... foram duas semanas. Esse foi o tempo que levou para que ela me dissesse que estava grávida. Que esperava um filho meu. O modo como me olhou e me disse aquilo foi... devastador. De um... jeito bom, sabe?
- Que bom que ficou feliz. Qualquer um ficaria se soubesse que teria um filho...
- Não era meu. - interrompeu Ulisses. - A criança. Não era meu filho. Eu já sabia disso, mas precisei ter certeza de minhas próprias conclusões. Já tinham se passado seis meses de gravidez quando a vi num encontro com Gui. Ele sim era o pai. Nunca consegui entender o porquê de Gedra fazer isso, mas procurei manter o controle sobre a situação. Apesar de tudo eu mantive meu relacionamento com ela. Vivemos mais algumas semanas juntos, até que eu notasse que ela tinha manchas pelo corpo e andava cabisbaixa. Talvez... talvez se eu não fosse tão tolo conseguiria saber o que estava acontecendo. E quando aconteceu... já era tarde demais.
- O que aconteceu?
- Gui queria que ela tirasse o filho. Gedra não queria já que tinha dito que eu seria o pai. Ela sabia que eu não aceitaria isso. Então ele começou a ameaçá-la. Machucá-la. Então... ele a matou. Atirou contra seu ventre.
Os olhos de Morga saltaram e a pergunta que faria a resposta veio de imediato da boca de Ulisses:
- O bebê se foi junto com ela. - Ulisses era grande e forte, mas a emoção lhe trespassava a face como uma máscara bem expressiva. - Foi nesse momento que andei pelas ruas de Mefroid e frequentei igrejas. Eu pedia, em todas as minhas orações, que Gui pagasse da pior forma pelo que fez.
- Então? - Morga agarrou-se a grade, se aproximando mais de Ulisses. - Ele pagou?
- O carro dele bateu contra a lateral de uma igreja. O impacto foi forte o suficiente para esmagar a frente do veículo e o peito de Gui. Já a lateral da igreja... nada aconteceu, a não ser algumas leves rachaduras. Nesse momento tomei Deus como meu Supremo. Então Jud veio até mim enquanto eu rezava. Foi como... como se ela soubesse do que eu realmente precisava. O que eu sentia.
- Ela é má, Ulisses. - disse Morga. - Eu sei que você sabe disso. Sei que independente do que você se transformou, Jud não quer o seu bem. Vocês são apenas peões no xadrez dela. E nesse tabuleiro ela coordena a todos porque no fundo ela quer salvar apenas a si mesmo. Acredite, Ulisses! Olhe para mim... olhe para nós! Todos cometemos injustiças! Eu sei que você não é uma má pessoa. Resgate a lembrança do que você era antes de conhecer essa mulher! Resgate a si mesmo.
- Vocês... ordenam a morte das pessoas através de visões. Isso é imperdoável. - disse Ulisses, encarando Morga suplicante.
- Não é isso. Eu sei que a Jud fez com que pensassem dessa forma, mas não somos isso! Nossas visões são apenas presságios. São mutáveis se pudermos salvar. Por favor, Ulisses, você tem que acreditar!
- Amanhã. - soltou, recuando o olhar. - Jud executará todos vocês amanhã pela manhã.
Morga apertou ainda mais a barra de ferro e agora estava a cinco centímetros do rosto de Ulisses.
- Por favor, nos tire daqui. - o choro não produzia som algum. As lágrimas brotaram e rolaram pela face ácidas e mortais. - Eu não vou cansar de dizê-lo: Não somos...
- Eu acredito em você. - disse Ulisses, virando o rosto para Morga. Seus olhos percorreram as pupilas dela e as gotas brilhantes deslizando. E como se o espírito bom espreitasse os dois a mão de Ulisses tocou os dedos de Morga levemente. - Acredito.
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Olhos Trágicos
ParanormalEm uma pequena cidade de nome Little Joanesburg não é comum se ver comentar muito sobre catástrofes ou problemas sociais. Com uma bela igreja no centro da cidade, lojas de utensílios maquinais e diversidades sendo frequentadas todos os dias, uma pr...