22. Descontrole

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"Deus nos dá duas escolhas: mate ou morra! Ou seria o Diabo?"

Em um caso particular, a sombria mente de uma criança se declina a miséria perante a uma dura perda. Os primeiros dias entram em contato com um afago da inocência, como se a pureza de sua alma não a permitisse chorar ou sentir qualquer tipo de dor. Então vem o sentimento de falta, de ausência, de impotência. O momento em que os olhinhos correm de lado e enxergam pela primeira a vida em sua matéria rude, bruta e potente. E o que parece um condutor de medo corre por suas veias, enfraquecendo cada resquício de coragem que você teve um dia.

Mobby, nesse caso, era a tal criança. Não pôde medir exatamente o momento em que percebeu que a mãe estava sim morta! Que Jud SIM tirou sua vida. Que SIM! Ela estava sob a terra pisada pelos hipócritas amantes da dor alheia. Mas de alguma forma isso veio até ela como um zumbido de tempestade. Vagarosamente dançando pelo ar até que carregue tudo pela frente. Mobby apertou os lençóis de forma desesperada.

(...) Estou fazendo o que Deus quer que eu faça (...)

Mobby remexeu-se, buscando apoio no colchão velho demais a parecer mais um cobertor grosso de espuma. Seus olhos apertaram-se de forma que lágrimas encharcassem sua olheiras.

(...) Eu os matei porque Deus quis. Eu matei cada um deles. Eu matei mamãe. Papai. Edgar e Beatrice. E agora você... demônio broto! (...)

Jud ergueu um toco rosa de carne. Uma roxidão espalhava-se pelos nervos e ossículos quebrados. Uma linha contínua de sangue ia do corte do membro até o dedo mindinho.

Mobby queria acordar. Óh, céus! Como queria acordar!

(...) Ele adora quando pico coisas ruins! Sim, meu Senhor adora quando faço cada um de vocês pagarem por existir! Deus sussurra a mim todas as suas vontades! (...)

Agora Jud erguera um pedaço grotesco que parecia putrefato demais para pingar sangue.
Parecia um pé. Primeiro um bracinho e agora um minúsculo pé.

O repúdio e a ânsia monstruosa dentro se si a fez implorar pelo despertar. Mobby não aguentava mais ser torturada por aquele sonho maligno. A imagem Jud erguendo membros de um bebê, que provavelmente era Alesh, era simbólico perto do que tinha ocorrido.

O pesadelo foi embora quando enfim Mobby libertou um grito abafado no travesseiro.

Uma vez um pensador falara que só as crianças conseguem refletir a verdadeira dor. A sinceridade através da dolorida perda. Ela não sentiu os passos, nem o tato na maçaneta. Não se incomodou com o escuro ou a aranha que passara sobre seus pés no corredor. Só se deu conta de si quando sentiu a chuva lavando a pele enquanto ela caminhava sem rumo pela estrada.

* * *

Não se incomodou com os sapatos. Ou a falta deles. O vestido amarrotado e ensopado. Nem com os loiros pesados e encharcados nos ombros. Os olhos enxergavam mais do que um simples caminho asfaltado e pedregulhos incômodos. Mais do que a iluminação rasteira da lua sobre a estrada e as árvores que, enfileiradas, vigiavam a noite como soldados do amanhã; teve um momento que se deu conta que estava sozinha. Então veio o frio. As gotas caíam pesarosas e a intensidade da tempestade se tornou um cenário de horror.

Uma hora depois seus pezinhos já tinham se ferido por seis vezes. A mais terrível quando pisou em um parafuso solto de algum veículo. Não perfurou, mas estava incomodando horrores. Mobby não ousou pensar no motivo que a fazia arriscar-se com aquela ideia. Não queria acreditar que estava fazendo algo estúpido, mas que estava ignorando a morte da mãe se escondendo na casa do tio de Leda como um esquilo covarde se esconde na toca do coelho.

A chuva dera uma trégua. Momentânea.

Foi o suficiente para Mobby conseguir apoiar-se em uma mureta e respirar um pouco, encolhendo-se com o tenebroso frio se arrastando pelo oeste de Little Joannesburg. Seus olhos fecharam-se no momento em que um um veículo passou com os faróis baixos e seguiu pela estrada sem enxergar o pequeno esquilo na mureta.

* * *

O inspetor de polícia de Little Joannesburg parou na encosta, antes de subir pela Obello 37. Não era tão velho como a maioria dos que se sustentavam num cargo de inspetor da cidade, mas estava longe de ser o mesmo rapaz que escalava a Pontlest durante o verão em Meveyard. A chuva tinha sido um rigor e subir Obello com todo aquele desnível descaradamente ameaçador estava longe de seus planos. Tinha discutido com a mulher na noite anterior e seu itinerário não estava na linha da glória financeiramente. O córrego ainda descia pela lateral da pista como um rio caudaloso e a umidade da pista brilhava como se um jato de óleo tivesse sido despejado de um caminhão há pouco.

- Só espero que o tapado do Vincent atenda essa merda, porque se não eu terei que enfiar aquele aparelho portátil dele amanhã onde ele não mais poderá tirar com aqueles dedos de gorila. - o outro lado da linha chiou, mas a chamada se sustentou. O inspetor desistiu após a quinta chamada. - cuzão!

O inspetor jogou o celular dentro do porta-luvas. Procurava um isqueiro, quando ouviu um farfalhar vindo dos arbustos próximos ao córrego.

O isqueiro de imediato foi posto de lado e o inspetor tomou uma PT100-Taurus e envolveu-a com os dedos desconfortáveis.

Será a porra de um animal procurando abrigo? pensou o inspetor.

- Inspetor Kyler! - mostrou o distintivo para a noite úmida. - Aproxime-se devagar, sem reação!

Ele sabia que se fosse algum animal não o daria ouvidos. Talvez o atacasse ou saísse correndo. Mas no caso de ser alguém estaria resolvido.

A sombra continuava a se aproximar.

- Para o chão! Agora! - gritou o inspetor, avançando com a pistola em mãos a trinta centímetros da cabeça loira de uma garotinha.

O espanto o fez ficar sem reação. Então, quando voltou a si, ergueu a menina, sustentando-a nos braços enquanto ela tremia de frio.

- Oh, querida... o que aconteceu? Está tudo bem... acalme-se. - o inspetor carregou-a até o carro e acomodou-a no banco traseiro. No porta-malas tinha dois cobertores da última viagem que fizera. Embrulhou-a rapidamente. 

- De onde você vem? O que... está fazendo sozinha em meio a esse tempo? Nesse lugar?

Mobby o olhou, ainda trêmula, mas com nenhum indício de medo em seu olhar. Ou de lágrimas. Se houvesse alguma coisa a ser derramada, sua alma tinha cuidado disso.

- Por favor, fale, querida... - o inspetor pôs o braço recostado ao banco quando se agachou à porta do veículo, encarando a menina no interior. - Talvez devêssemos começar nos apresentando. Eu sou o inspetor de polícia Kyler. E você?

Diante da noite fria tudo o que Mobby fez foi encarar a PT100-Taurus e aproveitar o cobertor. O que o inspetor Kyler não sabia era que ele poderia morrer dali a vinte minutos ao tentar subir a encosta. O carro derraparia, chocando-se contra as rochas da montanha, se Mobby não tivesse aparecido.

O esquilo. O esquilo na mureta tivera a visão.

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora