23. Recaída

24 2 2
                                    

"Sob os olhos do mal há uma fina camada de sutileza que permeia os corações abalados."

Hansen não lembrava exatamente quando o ponto negro começou a aparecer em sua vida. Mas se pudesse arriscar diria que seu início se dera após a primeira visão.

Ele estava preso naquela cela havia alguns dias. Além do pesado andar do carcereiro no corredor e dos ruídos de fome dos companheiros ao lado, trancafiados em outros cubículos, Hansen sentia o gélido ar lhe afagando a pele.

Sim, foi depois da primeira, pensou.

Era noite e o dia decorria de dez anos atrás. O pequeno Hansen tinha passado o dia na confeitaria da avó Joanne, experimentando os "Pedaços de nuvem", tipo de bolo caseiro que a própria avó fazia e colocava à venda. E agora os soldadinhos de plástico que empoeiravam numa caixa de sapatos era sua diversão.

- O governador deveria ser um pouco menos solidário com essas pessoas. - reclamou o pai, virando a página do jornal com fúria após o jantar.

- A boa digestão é importante, querido. Paciência. O cordeiro não é tão facilmente aceito pelo intestino. Eu sei que as coisas vão se resolver. - acalmou Olga, mãe de Hansen e esposa de Gerry.

Enquanto os dois mantinham o silêncio, ele continuando a passear os olhos pelos artigos e ela a passar circularmente a esponja pelos pratos, Hansen montava uma muralha de soldadinhos a frente da lareira. O plástico verde dos bonecos parecia derreter com o calor das chamas. Hansen tomou um carrinho feito de uma madeira há muito desgastada e continuou a implementar cenário na brincadeira.

Notou que um dos soldadinhos estava jogado a centímetros das chamas. Não teve ideia de como ele fora parar ali. A cabeça do coitado tinha derretido e o restante do corpo estava acompanhando o mesmo processo. Hansen esticou os dedos para resgatá-lo.

Foi nesse momento que o ponto luminoso apareceu. E a cena que viu o tomou de modo arrasador. Parecia uma breve viagem além da imaginação. Um lugar branquíssimo, fortalecendo a calmaria. E uma mulher caída sobre uma maca. Um hospital. O lugar era um hospital. E a mulher era avó Joanne. Ela estava... estava... pálida demais... como se estivesse...

A palavra foi soprada de sua mente com ferocidade, ao mesmo tempo que parecia ainda estar lá. Então surgiu o ponto negro. As vozes do pai e da mãe querendo que ele despertasse. O ponto negro continuou. Uma dor perversa chiando na mão direita.

- Ele queimou a mão, Gerry! Oh, Deus... - disse a mãe, desesperada.

- Filho! Filho! Han! - chamava o pai, por mais que estivesse vendo Hansen de olhos bem abertos.

Tudo tinha sumido. A imagem da avó, a visão... fora embora. Somente o ponto negro permanecia e nunca mais o permitiu que visse qualquer outra coisa no mundo a não ser as visões.

Agora Hansen estava só. Ele não podia enxergar, mas sabia que Kaeme estava na cela a frente. Sentia o seu choramingar. Era o mesmo de quando se decepcionava coma falta de comida na Caverna. Ao lado ouvia os assobios tensos de Érika, elevando-se acima de qualquer outra nota infame. E não precisou se esforçar muito para saber que na cela do lado esquerdo Matusa dormia e sonhava com os demônios do pai.

A cegueira tinha sido por muito tempo um obstáculo para Hansen. Mas se aquela fosse sua hora de partir, poderia encontrar todas as coisas novamente. Talvez o ponto negro o abandonasse. Talvez...

* * *

"Acredito"

A palavra ecoava mente adentro.

Morga realmente tinha ouvido isso do carcereiro? Mas de que valia agora uma crença de um mero carcereiro? Todos morreriam dali a poucas horas. Ao amanhecer. Era algo tão óbvio que tudo estava perdido, que Morga pôde sentir por um breve momento o gosto amargo do perecer em sua língua.

Olhos TrágicosOnde histórias criam vida. Descubra agora