"Não sou um estranho nesse lugar. Se sou louco, todos são."
A cortesia era um tanto quanto diversa na Caverna. Enquanto Dom se mostrava o protetor fidedigno de Mobby, alguns se mostravam tão estáveis, que por vezes qualquer expressão de surpresa ou ceticismo surgia em seus rostos. Muitos deles nem sequer virava-se para o outro e perguntava: "Mas quem é essa garota?", "De onde surgiu essa pirralha?" ou "Dom virou papai? melhor respeitarmos!". Enquanto isso o sussurro do vento lá fora era tão perigoso quanto o singular olhar de alguns ali.
Mobby ouviu algo do tipo: "Melhor não meter a mão aí, seu monte de estrume!", vindo dos fundos do corredor. Quando passou pela fileira de rosetas que emolduravam parte do caminho, onde uma luz mais densa e um pouco mais forte passava pelas frestas, ela notou que as palavras tinham saído de um garoto alto e magro, o cabelo loiro amarrado a um coque no alto e o corpo de uma predileção atlética. Ele havia se referido a um outro garoto, este gordo e com papadas que sumiam com o seu pescoço. O queixo ficava regredido na papada como uma espinha inflamada, e ele parecia ri, enquanto o garoto alto e magro lhe desferia socos sem auxílio de força. Mobby pensou que talvez o gordo tivesse mexido nos bolinhos de arroz do magro.
- Melhor parar com isso Wonner! - dessa vez a voz vinha de trás de um balcão de madeira e pedra escupida em triângulos pequenos. Ela pertencia a Wendy, a cozinheira. - Tem bolinhos para todo mundo! Não quero bagunça na minha cozinha!
Mobby sentiu Dom apressar o andar, então deu dois pulinhos para correr. Ele parou em uma das mesas e conversou por meio minuto com uma linda morena de olhos castanhos e cabelos Black Power. "Ficou ótimo." foi a última coisa que Dom disse antes da morena se agachar a frente de Mobby e abrir uma fileira de dentes perfeitamente alinhados e brancos.
- Oi, belinha. - Lindinha. Passarinho. Belinha. Mobby se perguntou se todos ali davam apelidos às coisas e do porque ser tudo no diminutivo. Fora isso ficou encarando a morena que continuava a sorri, e jurava que a tivesse visto em uma dessas propagandas televisivas ou até em uma passarela como modelo. - Achei que viveria para sempre guardando essa preciosidade em meu armário, mas pelo jeito ele será bem útil a partir de agora, não é? Assim como as outras peças... - ela alisou o tecido do vestido que Mobby usava.
Ela sabia que a garota era Erika, assim como Dom dissera no quarto/provador. E aqueles vestidos pertenciam a ela quando criança.
- As suas lembranças só estão se transformando nas lembranças de Mobby, Erika. Não se preocupe, ela adorou. - disse Dom, gentilmente, pousando a mão nos ombros da amiga.
- Eu sei, eu sei. - Erika voltou a ficar de pé e sentou-se de volta à mesa. - E... Mobby! Seja bem-vinda à caverna, belinha!
A garota sorriu timidamente, enquanto Dom a levava em direção ao balcão e à mulher que ia de um lado a outro, um pano jogado sobre os ombros e uma panela na mão. Wendy tinha cabelos castanhos bem curtos na medida das orelhas. Talvez se olhasse bem se veria alguns grisalhos intrusos entre eles. Duas a três rugas ao redor dos olhos demonstravam sua idade mais avançada em relação aos outros.
- Wendy! Que tal temos hoje? - Dom pulou em cima do balcão, sentando-se na extremidade.
- Desça daí, Dominus! Não quero confusão na minha cozinha, já disse! - nesse momento ela enxergou a sombra miúda atrás do balcão que pertencia a uma criança. - Ei! O que temos aqui? Uma Caloura tão linda quanto minhas amoras fresquinhas!
Mobby tinha amado o jeito meigo de Wendy se dirigir à ela. Estava começando a gostar do modo que estava sendo tratada naquele recinto tão novo para ela.
- Quer dizer que você teve seu Delírio? - Wendy disse aquilo para Dom com uma tranquilidade assustadora, e fez Mobby ficar pensando o que exatamente ela queria dizer com aquilo. - Meus parabéns, Dominus. Só não esperava que o seu Delírio o faria ir atrás de algo tão miúdo como esse passarinho!
Mobby ficou analisando a cozinha enquanto Wendy tagarelava com as panelas nas mãos, o barulho de ferro zumbindo segundo após segundo. A cozinha da "Tia Wendy", como todos diziam, (e agora ela entendia o porque do 'tia'), era um ambiente agradável aos olhos. Com algumas partes da Caverna escurecido, os vitrais tornavam o lugar um pouco mais iluminado e colorido. As mesas prostradas num espaço de dez metros quadrados (como um refeitório) eram feitas de mármore e as pessoas que conversavam nelas eram felizes, pelo que Mobby podia notar.
- Não quero saber de você deixando de lado essa garota, Dom! Ninguém aqui teve um Delírio com uma criança. Você é o primeiro! Todos aqui que tiveram delírios só tiveram de trazer seus calouros, e a maioria deles já com idade de aprender tudo sozinho! Ela - Wendy indicou Mobby com o dedo gorduroso. - é muito pequena. Muito nova. Você será um tutor para ela.
Dom apenas concordava com tudo que a mulher falava. Ordem é ordem, madame.
Quando Wendy se afastou com o panelão nas mãos em direção às mesas ( o cheiro de macarrão enlouquecendo os sentidos de quem estava ali) Dom escutou um ruído e viu que Mobby o chamava.
- Oi, lindinha... está tudo bem? Vamos partir para o rango agora. Tia Wendy vai nos servir...
- O que é Delírio? - Mobby o interrompeu, os olhinhos percorrendo seu rosto pensativo.
- Delírio - Dom explicou da melhor forma que pôde - é quando um de nós da Caverna tem uma visão de um outro igual a nós que está prestes a... você sabe, lindinha. Assim como eu tive com você! Você foi meu Delírio, meu primeiro Delírio, por isso a salvei! Então tiramos os nossos Delírios das trevas, o salvamos e o trazemos para cá. Delírios são somente quem consegue ter visões como nós. Quem não tem, mas mesmo assim aparecem em nossas visões são chamados de Mórbidos. A tia Wendy por exemplo... - Dom apontou para a mulher que colocava novamente ordem nos dois garotos brigando. O gordo e o alto, de nome Wonner. - Teve dois Delírios enquanto esteve aqui. Inclusive os dois Delírios dela estão brigando como dois cães famintos agora...
Mobby deu um risinho. Wonner e o garoto gordo continuavam a se bater numa brincadeira que deixava tia Wendy mortalmente furiosa. Quando Dom terminou a explicação Mobby começava a entender o mundo que a cercava. Ela tinha passado a vida toda tendo visões de Mórbidos, nunca de Delírios.
Uma hora tudo estava tranquilo, então um barulho forte foi ouvido na mesa ao lado e o prato com as almôndegas caiu, espalhando macarrão para todos os cantos de baixo da mesa. Tia Wendy correu para onde a pessoa se remexia, os olhos levados ao céu e os lábios dizendo algo inaudível. Mobby sabia que era desse jeito que ficava quando tinha as visões. Ela reconheceu o rapaz se debatendo. Era Patrus. O careca que estava acompanhado de Morga. O silêncio instaurado no ambiente era um véu de tensão. Enquanto Mobby esperava que aquilo acabasse logo, Dom, tranquilamente ao pé do ouvido dela, disse:
- Patrus ainda não teve nenhum Delírio ou Mórbido desde que chegou aqui. Vamos aproveitar esse espetáculo, lindinha!
Mobby ficou estarrecida ao saber que Dom falava sério. Ele deu um sorrisinho de lado, cruzou as pernas e comeu o macarrão como se nada estivesse acontecendo.
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Olhos Trágicos
FantastiqueEm uma pequena cidade de nome Little Joanesburg não é comum se ver comentar muito sobre catástrofes ou problemas sociais. Com uma bela igreja no centro da cidade, lojas de utensílios maquinais e diversidades sendo frequentadas todos os dias, uma pr...