Recomeço

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  Refiz rapidamente meu curso de enfermagem que tinha abandonado há tempos. No término, fui convidada atrabalhar na clínica que me recebeu no passado. Fiquei
sabendo que a causa do convite de contratação se baseava em certa conversa de Rafael com a nova diretora:

  Ela ficou sabendo de toda a história e claro, relutou a crer. Entre a dúvida dos fatos relatados e a certeza do que vira na cozinha, ou seja, entre não acreditar nesta loucura toda, ou acreditar na luta entre mim e Samira fora de nossos corpos na cozinha, preferiu seguir ambos os raciocínios:

  Primeiro – acreditar e me contratar, por entender que eu poderia ser extremamente útil aos novos pacientes.

  Segundo – não acreditar, preferindo não pensar mais
no assunto.

  E assim o fez:

  Contratou-me e fez questão de esquecer tudo depois, proibindo alguém tocar no assunto sob o risco de perder o emprego.

  Apesar de eu ter passado por maus bocados naquela instituição, aceitei prontamente o convite. Afinal, a experiência fez com que eu me tornasse outra mulher.

***

  O dom que eu desenvolvi no período de coma não foi perdido, ou seja, não desapareceu após ter recobrado minha consciência física.

  Curiosa, procurei em diversos locais, principalmente na
Internet, casos parecidos com o meu e o de Samira. Assustou-me saber que o fenômeno é relativamente comum e recebe vários nomes: uns o chamam de “Viagem astral”, “Projeção Astral”, outros de “Desdobramento” e outros ainda de “Experiência fora do corpo”. Descobri existir uma ciência
que estuda seriamente este fenômeno tão peculiar: a
Projeciologia. Digitando a palavra em questão, vi quase cem mil citações sobre o assunto, podendo observar a existência
de vários institutos nacionais e internacionais, grupos de estudo que ministram cursos ensinando técnicas específicas aos interessados: A tal “saída do corpo” de forma controlada, estimulando-se os Chakras*.

  Quanto ao desenvolvimento deste fenômeno, disseram-me apenas que, no meu caso, o hematoma subdural que consegui com o acidente reduziu de forma significativa minha atividade mental consciente, propiciando o desenvolvimento da atividade subconsciente. Ou seja, uma vez o consciente reduzido em trabalho, o subconsciente, ou se quiserem chamar de alma, ou aindaespírito, “tomou a frente”, favorecendo o desenvolvimento do fenômeno. Como resultado, minha consciência manifestou-
se para fora do corpo.

*Chakras – Pontos de entrada e saída de energias, responsável pelo equilíbrio energético
de nosso organismo, tanto físico quanto espiritual. Uma vez devidamente carregados
energeticamente, possibilitaram a criação do fenômeno.

  Foi-me dito também, que as fortes emoções sofridas, como raiva, angústia, medo, deixaram minhas energias e de Samira “pesadas”, a ponto de nos tornarmos visíveis a outros, tanto nós como as nossas próprias criações mentais.

  Quem sabe? Tinha apenas a certeza de saber o quantopoderia ser útil o fenômeno quando bem administrado. Com
prazer, continuei cedendo minha “ajuda extrafísica” aos pacientes que apresentavam distúrbios traumáticos.

  Rafael me disse brincando uma vez, que eu deveria cobrar hora extra por trabalhar tanto de dia como de noite.

  Riamos dessas bobagens.

***

  Tudo corria muitíssimo bem.

  A instituição se tornou famosa devido ao grande número de altas hospitalares atingidas. Isto só se tornou possível por um número maior de contratações, entre elas, várias ex-viciadas. Sabiam por experiência própria como lidar com os novos casos.

  Como resultado, a clínica superou seu precário estado
financeiro agravado pelas mazelas do antigo diretor,
sobrando verbas inclusive para melhoria do prédio.

  Entre estas reformas, Santa Dymphna recebeu um novo oratório suntuoso, confeccionado em mármore e granito. Apenas o velho quadro a óleo permaneceu intacto.

  Hoje eu não acho ruim quando os olhos da Santa Dymphna me perseguem. Ao contrário, sinto-me bem, sinto- me segura sob seu olhar. De resto, cabe dizer que a nova diretora fez algumas substituições na cozinha e, finalmente podíamos comer decentemente.

  Eu e Rafael nos tornamos os responsáveis pela recepção das novas meninas, além dele ter sido promovido finalmente para um cargo administrativo. Desta forma, vimos quando um novo veículo estacionou em frente ao prédio.

  A história era sempre a mesma: meninas emburradas, pais preocupados, várias malas cheias de inutilidades. Não raro, observando o semblante das novas internas, sentia-me olhando para um espelho que refletia imagens do meu
passado. Mas tudo chegara ao fim, minha dependência química nunca mais cobrou seu espaço. Tenho certeza que Santa Dymphna deu uma mãozinha nesta história.

  Após a entrada das moças, abracei Rafael pela cintura adentrando a clínica. Hoje namorávamos abertamente.

***

  Propositalmente, disse a Rafael que nunca tive a oportunidade de conhecer um parque de diversões montado na cidade vizinha e, certo fim de semana, atendendo meus pedidos insistentes, decidimos visitá-lo.

  Caminhamos pelo parque praticamente a noite inteira, ocupando-nos com vários jogos e utilizando os brinquedos que o local oferecia.

  Comprei um balão de gás, amarrei em seu braço e, depois, comprei dois saquinhos de pipocas.

  Certa hora, cansados de andar de um lado para o outro, decidimos nos sentar em um dos bancos de madeira ali disposto.

  Ele reconheceu a cena, comentando surpreso:

  – Gozado. Isto aqui já aconteceu...

  – Como assim? – perguntei, fazendo-me de desentendida.

  – Você aqui, deslumbrante. Este balão no meu braço, pipocas, sei lá... parece que isto ja aconteceu... – comentou, tentando entender a lembrança.

  Adorei ver o brilho em seus olhos.

  Hoje eu tenho a certeza absoluta de saber como ele realmente me vê.

  – Deve ser isto o que alguns chamam de Déjà-vu... – Sorri.

  Não dando mais atenção ao fato, beijei-o longamente.

FIM

Esta Edição
1 – Qual o seu medo?

Próxima:
2 – Vampiros Astrais

Qual O Seu Medo ? #Marcelo PrizmicOnde histórias criam vida. Descubra agora