"Tá melhor?"

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Hazel Jonatham

— Hazel...

Sarah deu umas batidinhas na porta antes de apontar a cabeça no vão.

— Oi.

A cumprimentei enquanto a mesma adentrava o quarto.

— Tá melhor?

Sentou-se na cadeira ao meu lado.

— É, até que sim. O único problema desse remédio é que ele... me deixa um pouco mole.

— Ah, ótimo. Quer dizer que está fazendo efeito. Então, eu vim aqui ver como você está e tentar entender o que aconteceu ontem.

— Temos mesmo que falar sobre o assunto? Eu costumo guardar os meus problemas só pra mim.

Me sentei na cama.

— Está aí um habito muito ruim. Você não sente vontade de se abrir com ninguém? Mesmo que sejam raras as vezes.

— Não, porque... ninguém quer mesmo saber dos problemas dos outros. As pessoas já tem seus próprios problemas. Não precisam de mais um pouco.

— Tem razão, não é toda vez que alguém se interessa realmente em saber como estamos ou se está tudo bem nas nossas vidas. Mas psicólogos como eu são pagos para ouvir.

— Não tenho como te pagar.

— Abrirei uma exceção pra você. E então, sobre o que quer falar primeiro?

Dei de ombros.

— Não sei.

— Que tal conversarmos sobre os seus machucados? Você disse que aprendeu a fazer isso com uma amiga. Quando tudo começou?

— Acho que depois deu ter sido adotada. A Mirela e o Ben eram ótimos pais, quando não estavam brigando. Ben saia cedo pra trabalhar e via que a casa estava uma zona. Quando voltava, ela continuava do mesmo jeito. Então Mirela começou a me cobrar. Mandava eu limpar casa, fazer comida, lavar roupa, passar o uniforme do papai. Quando eu não fazia direito, ela me batia, jogava água fervente em mim, queimava minha mão numa das bocas do fogão. Eu era apenas uma criança de 9 anos que ao invés de sonhar durante a noite, pensava em mil formas de morrer.

Abaixei a cabeça, já sentindo um nó se formar na minha garganta.

— No começo eu achava que pôr eles não conseguirem ter filhos, não sabiam como tratar um. Como eu era ingênua! A verdade é que eles só queriam uma empregada. Quando achava que as coisas não podiam piorar ainda mais, Ben começou a abusar sexualmente de mim. Mirela gostava de beber, então era só ela sair e nós dois ficarmos a sós que ele já vinha "tá na hora do papai comer". Tinha vezes que sentávamos nós três na mesa pra jantar e ele dizia àquilo. Eu perdia até o apetite... E àquela bêbada nojenta não percebia nada. Foi aí que eu conheci a Hayley pela internet. Ela me disse sobre se cortar por qualquer problema que surgia no seu caminho. Acabei tentando. Quebrei o meu apontador, peguei a lâmina e fui para o banheiro. Tranquei a porta, me sentei no acento abaixado da privada e botei um pano na boca caso eu gritasse. "Tá calor e você não pode andar de shorts dentro de casa ou o cara que você deveria chamar de pai vai achar que você está provocando ele". E lá se vai um corte. "Ele fala 'tá na hora do papai comer' como se você fosse uma vadia. Até prostituta é tratada melhor." Outro corte. "Ele passa a mão em você como se você gostasse." Mais um corte. "E a sua mamãezinha, aquela baranga imprestável e inútil? Quantos eu te amo ela já te disse?" Eu só ia passando a lâmina. Pensava num motivo e passava a lâmina. Pensava em outro e logo a lâmina entrava em ação. Foram vários cortes na primeira vez, que a propósito fiz aos 13 anos de idade. Que tipo de criança pensa em suicídio nessa idade? Eu ainda era tratada como um lixo qualquer pela minha "mãe", mas pelo menos Ben parou de abusar de mim. Quando me viu com os cortes ficou com nojo de mim. E vocês ainda acham que se cortar não vale a pena. Foi o que me salvou de mais quatro anos de abuso.

— E você nunca pensou em chamar a polícia ou o Conselho Tutelar?

— Pra voltar a morar num orfanato? Já tinha sido um custo me adotarem; e agora que eu era considerada uma criança problemática só porque tinha uns arranhões nos braços, ai sim que eu nunca mais seria adotada.

— Mas você não tinha um amigo, vizinho ou um professor com quem pudesse falar?

— Eu era uma garota com os braços ferrados! Quem iria querer ser meu amigo? Por isso comecei a esconder os ferimentos e a me cortar em lugar não visíveis. E outra, não posso descartar a ideia de que poderiam não acreditar em mim. Que sei lá, eu fiz àquilo enquanto brincava.

— Tudo bem, vamos seguir adiante. Kevin? Quem é ou quem era ele?

— Meu irmão mais novo. Ele morreu já faz uns três anos. Somos irmãos de sangue e viemos da mesma mãe, mas fomos separados quando nos adotaram. Eu sempre fui muito apegada ao Kevin. Ele era uma pessoa tão boa...

Funguei o nariz, não me aguentando de tanto chorar.

— Mas fez amizades erradas e acabou se desviando. Se envolveu no mundo das drogas e infelizmente não conseguiu sair. Era o único com quem eu podia contar já que muitas pessoas ao meu redor não se intrometiam para me ajudar.

— Desde então você vem tendo... pesadelos com ele?

Afirmei com a cabeça.

— E o que você vê?

— Muitas vezes eu o machucando, ou a Mirela. Eu não era essa Hazel que você está vendo, nem meu irmão era um viciado. De um lado está eu e o Kev e do outro essas nossas versões... obscuras. Elas estão tentando pegá-lo e eu como irmã mais velha não deixo. Eu penso assim, que era isso que eu deveria ter feito antes, o protegido das drogas, não ter deixado ele ir e se afundar quando durante toda a minha vida ele me defendeu e nunca fiz o mesmo por ele.

— Não se culpe tanto. Ele estava naquele mundo por ter feito escolhas erradas e você nunca teve nada haver com isso. Outra coisa que você se lembra e que da vontade de se auto mutilar?

— Quando penso no Link, meu ex namorado. Ficamos dois anos juntos e eu gostava tanto dele, até que ele começou a me tratar mal, a me humilhar, a desfazer de mim com a desculpa de que ia passar a tarde com os amigos. Então eu acabei descobrindo que ele me traia com a Lindsay, uma garota lá da escola. E eu venho sofrendo todo tipo de bullying na mão dos dois desde então. Ele saiu da escola, parou de estudar, mas Lindsay ainda me atormenta.

— E você não faz nada?

— Eu me corto.

A Menina Dos Pulsos Vermelhos (CONCLUÍDA)Onde histórias criam vida. Descubra agora