A descoberta da vida

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O último ano de tratamento foi muito intenso. Quanto mais debilitado ele ficava, mais feliz parecia estar. Ele descobrira o que poucos conseguem: o verdadeiro sentido da vida.

Muito magro e aparentando pelo menos uns dez anos a mais dos 61 que tinha, o sorriso voltou ao seu rosto. Iluminado. Contagiante. Ele encontrara, enfim, a paz.

Agora raramente caminhava. Vibrava com os poucos passinhos que ainda dava. Minha irmã veio morar conosco para cuidar dele durante o dia e lhe fazer companhia. À noite era eu quem ficava de vigília. Ela também me ajudava nos longos internamentos, e, assim, eu já não mais precisava trabalhar de dentro do hospital, e podia ir apenas à noite ficar com ele.

A filha mais nova o visitava com frequência e nesse período desenvolveram uma linda amizade e uma cumplicidade muito grande. A outra filha, casada e com um filho pequeno, morava na cidade na qual se formara e lhe monitorava por telefone rotineiramente. Ele se sentia plenamente amado.

Feliz, voltou a se alimentar melhor, mesmo quando estava indisposto. Fazia tudo o que podia para colaborar com o tratamento. Tomava rigorosamente seus remédios. Na maior parte do tratamento, ingeria 19 comprimidos durante um mesmo dia. Ele fazia questão de controlar os horários de cada um deles. Nós apenas monitorávamos.

A essa altura, já havíamos aprendido muito com a doença e os efeitos do tratamento. Aprendíamos mais e mais a cada sofrimento. Assim, não precisávamos mais recorrer ao hospital com tanta frequência e passamos a fazer alguns procedimentos em casa mesmo. O que lhe permitia um conforto maior.

Tínhamos vários truques que ajudavam a amenizar as reações colaterais. A mais grave e preocupante era a perda de apetite. Depois de muita pesquisa, encontramos os alimentos que o ajudavam a resistir melhor. Nesse período nós mesmos monitorávamos sua condição física com mais precisão, e já não dependíamos tanto da avaliação médica, o que era muito importante, porque qualquer espera provocava muitos danos. Assim, as intervenções podiam ser feitas antes que ele se debilitasse muito, como antes acontecia.

Mesmo assim, ele ainda era internado praticamente todos os meses para receber sangue devido às sessões de quimioterapia. E, para surpresa de todos, médicos e enfermeiros, conduzia tudo com muito bom humor.

Uma vez, passamos o feriadão de Carnaval no hospital. Ele havia sido internado novamente para conter uma crise de dor. Mas não havia mal-estar que o abatia e ele brincava com as enfermeiras, dizendo que deviam montar um bloco de carnaval naquela ala. Seriam os "Unidos do G2". E assim, com seu jeito simples, conquistava a todos.

Comemorava cada pequena vitória. Só que aos poucos foi se rendendo à cadeira de rodas e às fraldas noturnas. A dependência lhe doía profundamente. Mas, humilde e digno, ele se ajustou à nova realidade e aceitou sua condição. Com seu jeito encantador, passou até a fazer graça com ela. Não tinha quem não se apaixonasse por ele. Havia envelhecido muito, mas o brilho que trazia nos olhos lhe dava nova aparência. Transbordava vida. Transformava-o em outra pessoa.

Diariamente recebia seus muitos amigos em casa sempre com muita disposição. Todos o adoravam. Muitas vezes nem mesmo conseguia sair da cama. Não se importava mais. Contava os percalços do tratamento com irreverência. Falava da vida como quem acabara de nascer.

Quando seu corpo deixava, me fazia levá-lo para jogar truco e sinuca com os amigos. Outros dias, eram seus próprios amigos que faziam questão de buscá-lo em casa. Quando não podia ir, causava uma romaria de gente preocupada querendo saber como ele estava.

Em outubro de 2010, foi surpreendido por seus amigos que lhe levaram um bolo, em comemoração ao seu 62º aniversário. Valorizava intensamente cada gesto de carinho. Prezava cada amizade como um tesouro inestimável, ciente de que era esse o bem mais precioso que alguém podia ter. E se considerava uma das pessoas mais ricas do mundo.

No Natal, nossos amigos deixaram suas famílias para jantar conosco. Queriam estar com ele. Como sempre, ele se emocionou muito. Chorou, assim como todos que estavam ali.

Poucos dias antes, o médico havia alertado que sua resistência estava chegando ao fim. Os internamentos ficaram mais frequentes e as dores estavam insuportáveis. Nenhum tratamento mais era eficiente para a dor. A morfina e a codeína prejudicaram seu sistema urinário e pararam seu intestino, causando-lhe um desconforto muito grande. Ele pegou aversão a esses dois remédios. Não queria mais tomá-los.

Fomos então a um especialista no tratamento da dor. Experimentamos um adesivo, bastante caro e que durava apenas quinze dias. Por um mês ele não chorou de dor. E então ela voltou.

Com o avanço do câncer sobre seus ossos, as dores tornaram-se terrivelmente cruéis e se manifestavam em vários lugares diferentes do corpo. Nas crises, ele chorava a plenos pulmões, por vários minutos, até silenciar, sem forças.

Lembro-me de uma noite, em que, sentado em sua cadeira de rodas, tentava abraçar o próprio ombro esquerdo. Estava transtornado pela dor. Impotente, sentei e chorei com ele.

Passada a crise, secava as lágrimas e lá estava ele, sorrindo de novo, como se nada tivesse acontecido. Ele já não se deixava abater por nada. Não tinha tempo a perder com sentimentos ruins.

Brindava cada nascer do sol. Encantava-se com os passarinhos. Surpreendia-se com a beleza das flores. Lia muito. Via televisão. Tomava sol todas as manhãs. Passeava em sua cadeira de rodas sempre que podia. Passava horas vendo fotos minhas. E me amava, mais e mais a cada dia.

História de nós doisOnde histórias criam vida. Descubra agora