Eram três horas da manhã do dia primeiro de janeiro de 2007 quando ele me acordou, urrando de dor, pedindo que o levasse ao hospital. Ainda zonza com a bebida que havia consumido até pouco tempo atrás na festa da virada, levei-o ao hospital público que ficava perto de casa, onde sabia que haveria plantão médico no feriado. E fiz bem, pois o plantonista era amigo dele, e nos atendeu prontamente.
Diagnóstico: uma hérnia femoral com uma alça de intestino presa e necrosando. Prognóstico: cirurgia imediata. Começava assim nossa terceira batalha pela vida dele.
Fiquei no hospital até que ele saísse da sala de cirurgia e só então liguei para a irmã dele para contar o que havia acontecido, com pedido para que ela informasse as meninas. Em seguida avisei minha própria família, que não imaginava onde estávamos. Foi apenas nessa hora que tive condições de dizer corretamente o que estava acontecendo e já tranquilizá-los, pois o procedimento estava concluído.
De plantão - nessa época eu era editora do jornal -, fui trabalhar naquela tarde de feriado, para retornar à noite ao hospital. Só que as coisas se complicaram. Angustiado com nossa iminente separação, ele teve uma crise nervosa à tarde, e precisou ser acudido pelas enfermeiras. Mais tarde me confidenciou: sem entender direito o que estava havendo, pensou que eu o havia abandonado no leito hospitalar.
As filhas dele, de férias na praia, queriam que eu ficasse com ele no hospital, principalmente depois dessa crise, a qual elas nunca imaginaram a razão. Ao explicar, por telefone, que eu tinha compromisso com meu trabalho e que ele estava sendo bem assistido, tive uma discussão terrível com a filha mais velha, que me acusou: "Pra você, ele só presta quando está bom, não é?"
Aquilo ferveu todo o sofrimento enfrentado nos últimos meses e reforçou minha decisão de que nosso casamento havia acabado. Eu não merecia passar por aquilo. Não iria mais lidar com o destrato delas. Mas isso ainda teria de esperar.
Ele precisava da minha ajuda e passei as noites seguintes sentada ao lado do seu leito no hospital. De dia, cumpria minha rotina no jornal. À noite, vigiava seu sono. Muitas vezes com a cabeça apoiada sobre seu peito, vencida pelo cansaço.
No sábado, dia 6, ele teve alta médica. Já amparado pelas duas filhas, que haviam chegado durante a semana, foi para casa, enquanto eu trabalhava, pra variar. Mas o período em casa foi curto. Naquela mesma noite voltou para o hospital com fortes dores. Havia uma fístula no intestino - em termos leigos, um dos pontos da cirurgia havia se aberto. Ele foi submetido então a novo procedimento cirúrgico, mas sua debilitação física devido aos dias sem comer e à última cirurgia complicou a situação. Foram mais sete dias de internamento, alternando a rotina de trabalho e a vigília noturna. Dessa vez, duas noites eu passei em casa, porque as meninas se alternaram no hospital. Só que, em vez de ajudar, isso só tumultuou ainda mais a nossa bastante frágil relação. Ele não suportava que eu ficasse longe.
Já era metade do mês quando ele finalmente pôde deixar o hospital. Muito magro e completamente debilitado em função do longo período sem se alimentar, a recuperação foi lenta e trabalhosa. De dia, a filha mais nova lhe fazia companhia enquanto eu trabalhava. À noite, era eu quem o atendia. Mas irritada com tudo o que vinha se acumulando, o que se agravava pela falta de sono, para mim aquela tarefa simples tornava-se penosa. E eu não conseguia mais esconder isso. O que o magoava ainda mais.
A cirurgia ainda precisou ser refeita. Só que agora com planejamento e ele já um pouco mais forte, a recuperação se deu de forma mais tranquila.
Poucas semanas, quando ele já estava quase totalmente recuperado, depois meu limite chegava ao fim. À noite, quando nos deitamos, disse simplesmente que queria me separar. Não dei explicações. Ele também não pediu, temendo não suportar a resposta. Fui para o outro quarto. Essa foi a primeira vez que dormimos em camas separadas. Ou melhor, passamos a noite, porque nenhum dos dois fechou os olhos.
Na manhã do dia seguinte, uma sexta-feira, não o reconheci. Era como se sua alma tivesse lhe abandonado o corpo. O sofrimento era palpável. Não havia um sinal de energia, da sua constante vitalidade. Seu olhar era opaco. Sua pele, caída. Em apenas uma noite, envelheceu os dez anos que vivemos juntos. Senti o remorso imediatamente.
Partiu assim como chegou dez anos atrás. Com uma mala debaixo dos braços. Dessa vez, nem mesmo o travesseiro estava levando. Disse que nada mais queria.
Aquela imagem não me saía da cabeça. E 24 horas depois estava desesperada, tentando reverter o que fiz. A paixão podia ter acabado, mas meu amor ainda era forte. Não conseguia suportar a imagem do seu sofrimento. Só queria apagar aquela dor que eu mesma havia causado. Aquela visão nunca mais me abandonou. E eu jamais mais me perdoei por aquilo.
Após várias tentativas consegui falar com ele por telefone. Pedi para que voltasse, para conversarmos com calma. Ele já não tinha esperanças. Não acreditava em mais nada. Mas voltou. Na terça-feira. Foi então que, depois de tantos meses distantes, voltamos a nos olhar nos olhos, e deixamos que todo nosso amor voltasse a nos conduzir.
Contei tudo o que havia passado nos últimos meses, os tormentos que levaram à minha anorexia, como os meus desentendimentos com suas filhas me abalaram, até a crise no hospital. Contei tudo. Menos o que ainda não conseguia explicar. Por que razão a paixão que eu senti durante tantos anos não existia mais. E ele também nunca ficou sabendo disso.
Decidimos finalmente adotar duas crianças. Ele concordou, desta maneira: "Por você, eu aceito adotar". Não me importava sua reticência, pois tinha certeza de que os amaria. Também decidi iniciar mais uma faculdade. Ele concordou e, como sempre, deu muito apoio. Mas apenas nossa segunda resolução iria se concretizar.
Dez anos depois de entrar pela porta da minha casa, completamente apaixonado, ele voltou. Dessa vez debilitado pelas cirurgias recentes e totalmente alheio ao que a vida nos reservava a partir de então.
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História de nós dois
NonfiksiA série Anônimos conta histórias reais e impressionantes de personagens comuns. Domingo, 10 de abril de 2011, quase meia-noite... Sozinha, ali, naquele leito de hospital, me dei conta de que o amor da minha vida estava me deixando pra sempre. Já sem...