Introdução

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CORVALEN, 1633

Naquele reino, os devotos chamavam de justiça.
Mas Cateline aprendeu cedo demais que justiça, lá,
tinha sempre cheiro de mentira e carne queimada.

A Sra. Ashdown separava pacientemente suas ervas em potes de cerâmica: folhas de hortelã, paus de canela, camomila, capim-cidreira. Cantarolava uma canção antiga que aprendera com a mãe, e agora era acompanhada pela voz suave e melodiosa de sua filha de 12 anos, sentada à mesa com o rosto apoiado nas mãos:

By the stream sat Jane so still,John rode by from up the hill.She gave a smile, he gave a bow,And magic lingered there somehow.


He spoke of stars, she sang of trees,They met again with every breeze.And in the hush of twilight's gleam,They fell in love beside the stream.


A Sra. Ashdown interrompeu a melodia por um instante, sorrindo ao olhar para a filha. Colocou um feixe de coentro sobre a mesa e descansou as mãos na cintura.

— Muito bem, Cat. Essa aqui, serve para quê? — perguntou, apontando para um punhado de flores amarelas e pequenas num pote à frente da filha.

Cateline sempre fora muito inteligente e observava o trabalho da mãe desde que conseguira firmar os dois pezinhos no chão. Sabia de cor os nomes e os usos de cada ingrediente naquela mesa.

— Essa é anis. Ela é boa pra dor de barriga — disse com um sorriso contido, quase manhoso, que se abriu quando ouviu as palmas da mãe.

— Muito bem! Muita gente confunde anis com alecrim, mas não você — elogiou, divertida. — Daqui a alguns anos, será melhor do que eu. — Caminhou até a filha e depositou um beijo no topo da cabeça. — Vá ver se sua irmã já acordou. Vou guardar essas coisas e já chamo vocês pra comermos, tudo bem?

Cateline assentiu rapidamente e pulou da cadeira, correndo para o quarto, que ficava nos fundos da casa, separado apenas por uma grande e grossa cortina.

Sofia já estava acordada, distraída, brincando com um galhinho e uma formiga que vagava solitária por ali.

— Hmmm... então é por isso que está tão quietinha, hein? — disse Cateline, se aproximando. — O que está fazendo?

— Acho que ela não quer ficar aqui — respondeu a pequena, empurrando a formiga de volta para o centro do quarto. O inseto insistia em seguir sua própria rota. — Eu quero que ela fique, Cat...

— Sofi... — Cateline tirou delicadamente o galho das mãos da irmã e a pegou no colo, sentando-se com ela na cama. — Os bichinhos foram feitos pra serem livres. A Natureza nos dá tudo. A gente precisa retribuir esse carinho cuidando bem do que ela nos oferece. — Seus olhos encontraram os da pequena, cheios de uma dúvida inocente.

— Eu só queria que ela fosse minha amiguinha...

Sofia voltou o olhar para o chão, onde a formiga estivera segundos antes. Ao notar o vazio, seus olhos se encheram d'água — e Cateline percebeu na mesma hora.

— Ei, ei... eu sou sua amiga! — disse, animada. — E olha que legal, a gente pode brincar do que você quiser!

O sorriso imediato de Sofia aqueceu o coração de Cateline.

— Quero brincar de ser uma bruxa muito poderosa e transformar você numa linda princesa encantada!!

A fala inocente fez os olhos da irmã mais velha se arregalarem. Ela rapidamente tapou a boca de Sofi.

— Não! Não diga isso... e nem repita em nenhum lugar, entendeu? Nunca mais diga isso, Sofi.

O coração de Cateline disparava. Sofia não entendia o que tinha feito de errado.

Cateline sabia o que as pessoas de Corvalen falavam sobre sua família.
Viviam afastadas do centro, com vasto conhecimento em ervas medicinais... Nunca acendiam as velas do Dogma nas janelas às quartas-feiras. Não batiam a testa no altar ao final das procissões. Não usavam branco no Dia da purificação.
Pequenos gestos viravam pecados. 

E pecados viravam sentença.

Nunca foram bruxas. 

Cateline nem sabia o que significava realmente ser uma. Mas em Corvalen, isso pouco importava. As pessoas adoravam falar do que não sabiam — inventavam, julgavam e criavam suas próprias verdades.

Sua mãe explicara sobre os perigos de ser acusada de bruxaria.
As histórias sobre inquisidores e seus métodos... eram terríveis. Dolorosas até de imaginar.

Apesar de ampla, a casa dos Ashdown era simples, ao fim de um caminho sinuoso que adentrava a floresta. As idas de Cateline à cidade eram raras. Viver só com os pais e a irmã era o normal. E ela nem sentia falta do mundo lá fora. Na verdade, odiava o centro e sua sujeira.

Cateline amava o lugar onde morava: a natureza, a pequena cachoeira próxima, o silêncio cheio de vida. Tinha sua família. E isso bastava.

Mesmo isolada, sua mãe era conhecida na região. Ase Ashdown cultivava inúmeras plantas e ervas, e Cateline adorava vê-la em ação. Era curiosa e dedicada, e por isso ganhou o apelido carinhoso de Pequena Atena.

Muitas vezes, visitantes secretos chegavam à casa em busca de alívio para dores e doenças. Sua mãe ajudava todos, de coração aberto, e nunca cobrava. Alguns desapareciam para sempre. Outros, gentis, como o Sir Eric Hans, voltavam com pequenas recompensas: grãos, mantas, animais...

Cateline era feliz. E não queria que nada mudasse.

Mas o destino... o destino é mestre em reviravoltas sombrias.


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