Capítulo 11

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Lisboa, 6 de junho 1998

Meu Hans,

Hoje é sábado e o trabalho acumula-se! Pensei seriamente em tirar umas horas de descanso e ir passear à beira rio mas o trabalho não espera!

Honestamente, sinto-me verdadeiramente idêntica à tua situação. O trabalho tem de deixado completamente exausta e não sei de outra coisa que tenha feito para além da escola senão trabalhar. Chego a casa e tudo aquilo que tenho para fazer é tratar de assuntos da escola. Corrigir testes, fazer avaliações, atas e tudo um pouco mais. Tem sido um grande vazio. A minha irmã vem todos os meses visitar-me desde que se mudou para Coimbra. Era expectável que tal acontecesse. Depois de ter ido para lá estudar e ter conhecido o Gustavo, a vida dela ficou resumida à cidade académica. O trabalho dela é promissor e tenho quase todas as minhas certezas postas em que o futuro dela será o mais brilhante possível. Tudo parece lhe correr extremamente bem. Sente-se feliz com o trabalho, tem uma casa e uma família composta e tudo para ela faz sentido! Apenas gostaria de conseguir alguma parte daquilo que ela conquistou. A Alice sempre foi um grande motivo de orgulho.

Oh Hans... Ao olhar agora suavemente por entres os vidros da janela, a única coisa que me lembrei foi do teu olhar brilhante escondido na luz quente que cobre a cidade! Irias adorar estar aqui de momento. Creio que em Gotemburgo os raios afiados de sol comecem finalmente, também, a sobressair, mas nada se deve comparar ao fervor que é a luz lisboeta! Lembro-me todos os dias de nós e das nossas conversas acompanhados sempre por um bom sol e um café amargo, como nós sempre preferimos. As ruas começam lentamente a encher-se de estrangeiros. Dava tudo para que pudesses voltar a ser um. Perdido aí por cada canto ensombrado da bela cidade. E dava tudo para poder voltar a ser uma das jovens frescas e contemporâneas que se trespassam pelas multidões, cegas pela juventude e carregadas unicamente pela luz, à procura de sentido. Dava tudo para que pudéssemos voltar a esta cidade e ao ano de 1984. Mas infelizmente o tempo não volta a trás, e como tu mesmo disseste "talvez a conformação chegue um dia com o tempo." é em tudo o que me resta acreditar.

A Alice ligou-me recentemente. Choramos as duas ao telefone quando desabafamos sobre águas passadas. Uma das feridas em que mais fundo tocamos foi na morte do meu avô. Ela não guarda na memoria grandes recordações da sua vida. Confiou-me que uma das ultimas memorias que tem de ver o seu alegre rosto foi quando, por acidente, o encontrou desmaiado no chão da sala da casa da quinta, naqueles fim de semanas de Agosto em que íamos para lá. Tenho pena que tenha sido assim.... Como é tão triste esta vida.

Não falo para os meus pais faz já muito tempo, e consome-me esses remorsos agora que, escrevemos a tinta escura algumas das historias que mais nos doem individualmente. Engraçado será dizer que todas elas são pelos familiares próximos. Tu mais que eu, mas entendes o que quero dizer. Os meus pais sempre estiveram lá, verdade seja dita, mas nunca da maneira correta. E da minha família eu guardo o carinho pela Alice e pelo meu futuro sobrinho/a que está para chegar. Cada um de nós foi sempre demasiado orgulhoso para dar o braço a torcer e nesta história toda, quem acabou com o papel de arruaceira fui eu, como era de esperar. Talvez um dia conversemos sobre toda esta historia digna de novela, quem sabe...

Sinto pena pela Ebba. Deve ser triste viver essas verdadeiras mas macabras realidade que a sociedade ofusca em relação à vida. 'As doenças é que escolhem a gente'. Nem imaginas as vezes que já repeti para mim esta frase. Admiro-te tanto Hans... o se tu soubesses... és uma pessoa tão vivida, tão forte, determinada. Daria tudo para ter alguma parte da tua energia e personalidade. Fui deixando a minha para trás ao longo dos anos... nem imaginas o que isso me pesa agora...

Em poucas semanas estarei de ferias. Bem, não propriamente mas enfim. Os alunos irão-se embora. Alguns para a universidade, outros para a triste realidade que é a vida. Uns continuarão na escola e longe de mim. Quem sabe nunca mais volte a ver algumas daquelas caras tristes. Como tu dizes, temos que esquecer, porque a seguir deste vem outro e ninguém quer saber da tua dor para além de ti próprio. Verdade. Eu sinto isso diariamente com os jovens que me passam pelas mãos.

Parecerei um pouco ingrata se disser que receio a chegada das minhas férias e das ferias dos meus alunos. Mas é o que sinto. Depois de todos irem para casa e daqueles portão cinza se fecharem, eu não terei mais nada. O vazio aumentará e a minha vida será exclusivamente resumida a livros e solidão.

Pelo menos terei cartas para escrever e o sol quente de verão para me acompanhar em cada final de tarde. E claro, as memorias de tempos bem vividos ao lado da frescura do rio. Que bom que sabe Hans...

Da tua eterna sonhadora,

Júlia Severo

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[N/A]: Olá! Bem só passei aqui para agradecer todos os comentários e votos que me têm deixado! é uma das melhores coisas do mundo.
Bem, caso tenham reparado, agora tanto a Júlia como o Hans não têm limitado as cartas a descrever os seus sentimentos mas também os seus dias e ocasiões do passado. É uma pequena mudança para o desenrolar da história.
Acho que é tudo. Obrigada por lerem. Significa muito.

~ Maria João

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