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Gotemburgo, 31 março 1998
Minha doce Júlia,
Como as lembranças me surgiram após a tua carta. Como o passado me veio à tona e me fez realmente pensar em tudo.
Depois de tanto tempo havia-me esquecido o quão bom era falar contigo, uma mulher tão segura e sempre com as melhoras palavras para dizer. Acho que apesar de te descreveres tão negativamente não foram tantas mudanças assim que te cobriram. Anseio que seja essa a verdadeira realidade e não só o reflexo do meu olhar sempre brilhante sobre ti, minha Júlia.
Apesar de tudo continuas com as palavras mais acertadas, uma realidade funda na tua mente e uma escrita do momento, que retrata aquilo que pensas, já eu nunca consegui escrever realmente os pensamentos que me surgiam e atrapalhava-se sempre na hora H; o que me valeu sempre foi a 'habilidade gramatical' e o 'culto' como lhe chamavas.
Fico contente que embora o teu sonho de hospedeira tenha sido deixado para trás, tenhas conseguido ingressar numa profissão que eu acho de todo adequada a ti. Eu sei que, não existe nela a chama, a adrenalina, a aventura e a viajem que sempre ânsias te em tudo o que fazias e em todas as decisões que tomavas, mas pensa que como tu mesma disses-te: as profissões não servem para nos realizar pessoalmente. Elas servem para nos preencher.
A Júlia adorava ler, e sempre me irei lembrar o quanto conversavas sobre a Odisseia e todas as passagens do livro que escrevias nas costas das folhas das cartas, sempre, e que eu confesso sentir saudades.
Recordo o quanto insistias com o livro e explicavas o seu significado para aquela nação, do quanto aquela epopeia retratava uma cultura e força, junto com estratégia e amor. A Júlia falava-me tanto do livro e do quanto o adorava que eu como apaixonado nórdico fui passar os meus olhos pelas páginas desse livro que tanto te cativava.
O resultado foi o esperado: apaixonei-me um pouco mais e fiquei cativo na magia guerreira que tu me explicas-te e que eu não entendia. Apesar de fazermos parte de uma nação coberta com a mesma fama de europeia, dentro de nós flui uma diferença insana que apesar de todas as diferenças se assemelha uniformemente, com a sede da exploração e magia da força pessoal.
Nunca mais me esquecerei do dia em que decidi aprender uma língua nova e do quanta magia isso me trouxe. Nunca fui uma alma nacionalista porque acredito ser filho do mundo e acredito partilhar o fogo interior com cada ser que vê o mundo com os mesmos olhos que eu. Talvez por isso sempre me senti em casa em todos os países que visitei com o meu pai que há algum tempo me deixou, desamparado e com imensas perguntas por resolver. Serei para sempre o filho ingénuo que se agarrava à ganga das suas calças e o abraçava medroso com o mundo, buscando todas as perguntas que me passavam pela mente. O senhor Sven Andersen deixou-me no meu legado uma vasta cultura, e a ele devo todas as lições e ensinamentos que partilhou comigo ao longo da sua jornada.
Relembro agora todas as vezes que ele chegava a casa com um livro novo ou bilhetes de avião para largarmos a grande cidade e 'irmos em busca de resposta', como ele mesmo costumava denominar. Talvez a viajem mais marcante que fizemos foi mesmo quando visitei a nossa Lisboa, a cidade que para sempre reterá em cativeiro o meu coração.
Lembro-me tão bem Júlia do dia em que aterrei em solo Luso e como aquelas três semanas ficaram gravadas a quente na minha memória até hoje.
Aprender português foi um dos maiores desafios que já enfrentei, mas a recompensa final valeu cada esforço.
O meu pai achava interessante eu aprender uma língua nova todos os anos e acreditava que ser fluente em alguma língua não deveria ser o ponto principal e objetivo. Ele sempre me explicou que primeiro devemos interiorizar a cultura da nação antes de querermos fazer parte dela e da língua que é a maior dádiva. Eu escutei sempre as suas palavras com a maior admiração e sempre levei isso a sério.
Por isso mesmo com 18 anos, pouco depois de acabar a gymnasieskolor, ou como se designa em Portugal , o ensino secundário, decidi parar um pouco antes de pensar naquilo que me esperaria o futuro, mal sabia eu que estava prestes a ficar preso numa alma livre e insana, cheia de sonhos e com os mais belos cabelos escuros. Foi nessa altura que, enquanto aprendi algumas coisas da língua portuguesa, o meu pai me surpreendeu em casa com uma viagem até à capital Lusitana no dia 1 de setembro de 1986.
Nunca mais me esquecerei de toda a beleza que os meus olhos reflectiram no meio de cada ruela e do quanto o meu coração se abriu para aquela cultura tão diferente de tudo aquilo que já tinha visto. Um nórdico perdido pelo rossio naquela tarde quente de final de verão, que até hoje, 12 anos depois ficou marcado para sempre pela aquela bela e inocente portuguesa que sempre enchei o seu coração e tentou a todo o custo libertar-lhe aquela mente demasiado realista e preocupada, preso na realidade e na insana sede do 'fazer', que perdia os sonhos na busca de objetivos que até hoje lhe fogem por entre os dedos e que nunca lhe irão realizar pessoalmente como a força do amor pela aquela 'garota' de olhos verdes que lhe sorriu naquela tarde de final de verão e que encheu o seu quarto com as mais belas cartas de amor.
Nenhuma viajem havia valido tanto a pena.Do teu amoroso nórdico,
Hans Andersen

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Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...