***Lisboa, 17 maio 1998
Caro Hans,
Assombra-me a dor que a ti te persegue! Nunca tive a mais leve impressão que a morte da tua mãe tinha sido um acontecimento tão chocante e duro. Percebo agora, finalmente, toda essa dedicação e persistência! O porquê de nunca teres-me deixado questionar ou influenciar-te por cada palavra que eu dizia sobre deixares a medicina para trás. Ainda bem que não o fizeste, orgulho-me tanto daquilo que és Hans, e mesmo sentindo te vazio e mórbido todos os dias com a profissão que exerces, eu sei que lá no fundo é aquilo que sempre quiseste fazer e sei também que se hoje não estivesses todos os dias de manha num hospital a trabalhar e a salvar vidas nunca te terias perdoado.
Arde-me o peito de tentar compreender o que terá sido as lembranças pesadas que todo o dia assombravam o teu pai e a ti quando chegavam a casa. As memorias tem esse lado bom de nos poderem trazer de volta o passado e os bons momentos lá vividos, mas da mesma maneira trazerem as coisas que nos assombram e que nos fazem sofrer. Eu por exemplo nunca gostei de visitar Sintra na altura do Natal, como sempre fiz desde criança. Era tradição e a minha família estritamente conservadora e religiosa achava um desrespeito à moralidade não ir á terra no tempo natalício. Não que eu não me sentisse bem lá, nem por ser um capricho egoísta da minha parte, a razão não era de todo essa. Eu não gostava de regressar lá na época de Natal porque as memorias tristes escondiam-se em todos os cantos daquela sagrada quinta, em cada recanto daquele jardim vibrante e fresco. As lembranças caíam-me nas costas de cada vez que eu pisada aquele solo reluzente enquanto o frio áspero passava ferozmente por entre as altas e enumeras árvores das mais diversas castas. Sabia perfeitamente que era meu dever conseguir lidar com isso de uma maneira imparcial e forte, mas não me sentia capaz de tal. Eu apenas me conseguia concentrar em toda a dor que me consumia e em todos os pensamentos nostálgicos que me envadiam e não em todos os aspectos positivos, que deveriam ser os principais.
A partir do momento em que o meu avô deixou de se sentar naquela mesa connosco, tudo perdeu sentido, e apesar de me mostrar deveras reticente em ir até aquele mais belo lugar, a minha familia achava-me imioral por o fazer. Eram hipocritas, porque apesar de se mostrarem fortes eu sabia que tudo o que lhes vinha à cabeça, por detrás daqueles falsos sorrisos, era a maneira infeliz e injusta como ele nos tinha deixado.
Sempre fui a melhor amiga do meu avô, eu sabia disso. A nossa relação ia para além de neta e avô. Nós éramos verdadeiros amigos e confidentes que se interligavam. A ele devo o gosto pela literatura, pela história e pela viagem. Foi ele que em cada tarde fria de inverno ou noite abafada de verão me deleitava com as mais belas histórias sobre as suas viagens. Sobre toda a luta que foi obrigado a ultrapassar em terras desconhecidas. Como em barcos viajou até aos quatro cantos do mundo e como fora uma das crianças obrigadas a sair do centro da europa para fugir da guerra. Sempre o admirei por todas as razões e irei para sempre guardar no meu coração cada postal que ele me doou, numa velha caixa aveludada, de cada sítio que visitou como paquete de um navio. Sabe tão bem recordar... oh, Hans...
Em comparação a ti, a despedida do meu avô não foi nem uma das tuas frias lágrimas. Até me sinto mal em derramar desabafos nestes papéis quando tu Hans tens muitas mais razões para te sentires necessitado de utilizar as belas palavras.
Ao contrário da morte da tua mãe, aquilo que levou o meu avô foi algo que nenhum de nós poderia alguma vez evitar. As doenças é que escolhem a gente...Não consigo imaginar toda a dor, não consigo pensar em como terão sido os teus dias depois da morte da tua mãe e da perda do teu futuro irmão. Qual a razão disto tudo? Para que é que os seres humanos foram inventar as relações sentimentais se tudo o que elas nos fazem é causar dor, sofrimento, angustia e muita desilusão. O amor é uma invenção do homem e uma arma letal. Platão acreditava e defendia que o amor era uma grave doença mental. Eu nunca concordei bem com isso desde cedo mas também nunca fui apologista da imagem positiva e angelizada com que o mundo refletia a verdade sobre este sentimento. Talvez só tenha entendido realmente tudo isso após te conhecer e perceber, finalmente, que o amor são criações nossas, criações essas que as pessoas tecem em redor de algo, na maneira como aproveitam as condições a que são sujeitas para se realizarem pessoalmente. O amor serve para ser dividido mas é feito na ideia de nos satisfazer unicamente; em preencher o vazio que vai na mente dos seres humanos em que estar só é mau e que precisamos de alguem para nos confortar. Eu nunca precisei de ninguém e isso revela-se todos os dias quando a unica coisa que verdadeiramnete necessito diariamente para adormecer é olhar para a estante velha e desorganizada num dos cantos do meu quarto que possui na sua maior constituição, cartas. Cartas essas que a pessoa mais especial e a unica, capaz de desfazer da minha cabeça teimosa todas as ideias daquilo que era o amor me enviou durante anos a fio. Essa mesma pessoa mostrou-me não só a mim, como a toda uma sociedade triste da conformação periferica que o amor não tem necessariamnet de ser aquela historia banal que se desenrola durante tantos anos de historia civil e organizada. Ela pode ser simplesmente uma relação onde duas pessoas opostas em um ou outro sentido vão aprendendo a se assemelhar a todos os efeitos e a encobrir todos os desgostos e alegrias que cada dia a vida nos trás. Não perco mais nenhum segundo a tentar definir o amor porque acredito que tal sentimento não é definível. Assim como, cada um sabe quando sente o amor, cada um sabe defini-lo à sua situação.
Acabei de ler drottningens juvelsmycke e nem sei como explicar em palavras as coisas que tenho a dizer-te.
A trama que se segue com a vida de a Adolfie e da Amanda é algo extraordinário. A escrita de Carl Jonas Love Almqvist preenche-me e faz com que eu me perca no desenrolar de todo o drama com a jóia de rainha! Adorei. Já previa que tal acontecesse.
Agora espero mais um dos teus fantásticos livros antigos, para ler em seguida às "Flores do Mal". Nesta carta segue alguns textos de Alexandre O'Neill. Estive recentemente a trabalhar alguns deles numa das aulas e achei por bem te enviar. Creio que vais gostar.
- Os convencidos da Vida
- Idiota e felicidade
- Besta Célere
- Desaprender, um dos meus preferidos.Com amor da tua eterna sonhadora,
Júlia Severo
***
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras senteFernando Pessoa
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Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...