Capítulo 20

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Gotemburgo, 15 setembro 1998

Júlia,

No meio de toda esta correria da vida tinha me deixado levar pela distracção. Perdoa-me, com todas as letras cruas desta enorme palavra, o facto de ter deixado esta data tão importante passar em branco.
Esta não é de todo uma carta fácil de escrever....
Ainda há tanta coisa pro dizer e resolver entre nós os dois. Infelizmente...

Fez 12 anos que deixei Lisboa. A cidade onde encontrei o amor da forma mais pura que podia alguma vez na vida encontrar, e onde recusei inconscientemente ser feliz. Perdoa-me. Perdoa-me Júlia por todas as coisas que deixei por fazer. Tens toda e qualquer razão para me responsabilizar por tudo aquilo que não aconteceu.

Contudo, nunca pensei das coisas dessa forma como falaste. Nós sempre nos entendemos tão bem, e apercebo-me agora que sempre fomos muito maus em comunicar verdadeiramente um com o outro.
Sempre soubemos escrever cartas bonitas, demolhadas em palavras cheias de beleza e um tanto quanto vazias de conteúdo. Embelezamos frases de amor a todo o custo e deixamos passar o significado que deveriam transmitir. É um erro nato dos românticos.

É triste ler a tua carta e pensar em tudo aquilo que poderia ter acontecido. Vivemos esperançosamente e estupidamente depressa demais.

As madrugadas começaram a tornar-se o nosso único momento de companhia, a nossa única oportunidade para nos sentirmos perto, e entretanto os dias, os meses, os anos intrometeram-se pelo meio, preenchendo os nossos dias, ocupando as nossas cabeças e fazendo os nossos olhos latejar antes do anoitecer.

Hoje em dia são poucos os momentos que saudamos as nossas memórias com o peito cheio de esperança. Carrego dentro de mim apenas angustia Júlia, lamento ter que to dizer.

Não foi fácil viver estes anos todos longe de ti. Não foi fácil sentir-te tão perto todos os dias e saber que estavas na outra ponta da Europa. Foi torturante a agonizante, cada um dos dias. Foi particularmente penoso ter que lidar com a tua presença à minha volta, como um fantasma que me relembrava a toda agora que estava cada vez mais longe de ti. Foi difícil lidar com a saudade de uma maneira tão torturante. Escrevo isto com um nó no peito e uma ponta de linha agarrada à garganta. Creio que entendes o que quero dizer. Sentia te aqui comigo todos os dias. Sentia que quando acordava, estremecido pelo frio das manhas da grande cidade, tu estavas ao meu lado na cama, agarrada aos teus livro clássicos e a encher o meu quarto cinzento de luz. Imaginava que enquanto tomava o meu tórrido café tu estavas sentada ao meu lado na poltrona, a passar os dedos finos sob a colecção de livros e a tirar-lhe o pó de vez em quando com as tuas leituras. Sonhava que enquanto deambulava por Gotemburgo, e por todas as outras grandes cidades que a sorte me permitiu conhecer ao longo destes anos, tu estavas comigo. Planeava as nossas conversas, idealizava os nossos toques e pensava a todo o momento no teu sorriso contemplando a obra-prima do teu rosto, os teus olhos verdes.

Escrevi-te poemas românticos demais, ignorando a minha corrente realista. Ignorei as minhas idealizações do correto e julguei-me aventureiro a todo o momento. Fui um reles e obscuro mentiroso. Enganei-me a mim próprio a achar que estava a fazer de tudo para levar esta paixão, este amor mais puro para a frente. Achei-me capaz de lidar com todo este sentimento que ia dentro de mim, e prometi a mim mesmo ser capaz de te fazer feliz. Iludi-me. Iludi-me tanto a mim como a ti, Júlia. E preciso aproveitar esta carta para te pedir perdão por isso.
Não vou escrever hoje sobre futuro, nem sobre o presente. Não vou escrever sobre o que sinto nem contar-te os pormenores pitorescos e triviais do meu dia-a-dia.
Esta carta será endereçada a um Júlia do passado, com a mesma morada de sempre, outro corpo, outra alma, mas as mesmas lembranças da Júlia de outrora.

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⏰ Última atualização: May 22, 2023 ⏰

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