***Gotemburgo, 30 maio 1998
Minha doce Júlia,
Talvez a conformação chegue um dia com o tempo...
Não sei de mais nada que ainda me custa tanto falar e tu podes ter noção disso quando nem mesmo contigo, de escrevi alguma vez a contar sobre esta situação tão desoladora do passado.Por sua vez, fico deveras contente que tenhas gostado de drottningens juvelsmycke , eu tinha quase certeza de que esse seria o resultado. É um livro que nos prende a alma, o corpo e a mente. Faz de nós rasteiros ambulantes a deslizar por páginas secas na procura de mais.
Ultimamente a minha vida tem estado estagnada, como tu mesma sabes, mas por incrível que pareça acho que desta vez não de uma maneira negativa. Tenho conseguido pegar ao serviço com uma ideia não tão frustrada. Acho que é esse o truque: encontrarmos positividade para conseguir tornar as coisas minimamente melhores.
Os dias no hospital são tudo menos relaxantes mas sim, tinhas razão, eu nunca me teria perdoado se não vestisse esta bata branca com Andersen bordado no peito. Tenho feito cada vez mais horas e cheguei à fase de jovem médico em que repetimos ao de leve mentalmente que "já vimos de tudo". Mentira. Não, não vimos. Nunca iremos ver. Todos os dias irá de entrar alguém por aquela porta com algo diferente, algo que nunca viste e com que sentes medo de falhar, de não conseguir fazer o necessário. Nunca ninguém entende os erros dos médicos. Todos nos olham como seres humanos normais mas exigem de nós algo desumano: não errar. Qualquer um irá apontar o dedo ao mais pequeno deslize e é para isso que tralhamos e nos esforçamos tanto: para não errar.Numa das piores fases da minha vida, e recente aliás, deparei-me com uma visão do mundo demasiado triste. Quiçá não seja mesmo essa a verdade, mas não me conformo em acreditar que eu sinta tanta tristeza a pensar naquilo que sou e naquilo que todos nós somos. O porquê de tudo. Talvez eu tenha dito um dia que depois de tantos momentos escandalosos presenciados nos acabamos por habituar a tais cenários. Não pode ser assim! Recuso-me a ter que ser assim! Não aceito chegarmos ao pouco de olhar para uma criança que entra a morrer num hospital porque foi agredida por algum dos progenitores e acharmos isso normal
Recuso-me a tomar como aceitável a noticia de que morreram milhares de homens, crianças e mulheres devido á guerra. Não consigo tomar como humano pessoas, amantes, companheiros terem o sangue frio de levar a cabo mortes dos seus entes queridos!Os médicos são vistos como seres imparciais, fortes, inquebráveis e por sua vez, sem sentimentos. Tudo mentira. Nós somos banhados diariamente com histórias em que a nossa maior força não é suficiente para resolver. Somos enfrentados com problemas que quem sabe, nem o nosso maior talento, concentração e dedicação pode ser capaz de curar. E as forças assim como vêem na hora certa também se vão, desaparecem no momento errado; e as lágrimas aparecem, destemidas, e tu estás ali sozinho porque ninguém presta atenção na tua dor do fracasso. Tens que ser rápido e esquecer facilmente porque a seguir daquele vem outro e a tua dor não é tema de interesse para mais ninguém além de ti próprio.
Digo-te isto agora, num desabafo interminável e doloroso porque à pouco mais de dois dias perdi uma paciente que me era muito querida. Não foi a primeira, nem muito a última, mas foi a minha pequena Ebba. Eu era um dos médicos que estava a acompanhar o seu tratamento de quimioterapia. Ebba era a mais encantadora menina de 4 anos que alguma vez eu tive contacto. Criámos uma relação tão boa que até hoje continuo a perguntar o porquê de a ter encontrado numa situação tão devastadora. "As doenças é que escolhem a gente"... verdade Júlia! Ela adorava que lhe contassem histórias e o seu leve e frágil sorriso ao ouvir algum dos voluntários e/ou enfermeiras a expressar uma leve frase do mais banal conto infantil eram todos os raios de sol que o inverno severo daqui esconde. É uma pena as coisas terem acabado desta maneira, ela não merecia e eu também não.
Já li esses textos que me sugeristes. Engraçado como eu nunca encontro em nenhuma livraria de Gotemburgo as traduções para sueco das obras que me sugeres. Por sorte o meu português tem vindo a melhorar ao longo do tempo com toda a leitura e escrita que tenho vindo a praticar nas nossas cartas e na nossa troca de gostos literários. É sempre bom! Um dos meus preferidos talvez tenha sido o 'Desaprender' como tu. É excelente.
"Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns"
Cada vez tenho menos tempo para actividades pessoais. Ando esgotado do trabalho e a minha casa juntamente com a minha vida está uma verdadeira confusão. Isto tudo talvez se deva ás trocas de turnos que tenho feito com os meus colegas no hospital. Eles têm famílias e casas para cuidar. Muitas das vezes as horas a que são sujeitos para trabalhar são tudo menos decentes mas como sempre temos que estar disponíveis. Eu mostro-me recebível para os ajudar, porque sei que quando estes chegam a casa tem famílias e filhos à sua espera e tudo aquilo que me espera quando chego a casa, é o frio, uma garrafa de whisky escocês e a solidão.
Do teu amoroso nórdico,
Hans Andersen
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Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...