Gotemburgo, 5 agosto 1998Querida Júlia,
Demorei demasiado tempo para pegar em papel e caneta e escrever te, mas acho que finalmente já estou pronto para começar uma resposta.
Não tem sido nada fácil Júlia e eu nem sei como começar desta vez.
Já tentei, sem sucesso, um número significativo de vezes, escrever. Mas de todas as vezes que começo as palavras acabam por me fugir juntamente com as lágrimas. Já não há volta a dar.Tento olhar para trás e ver onde errei. Mas os dias passados parecem me tão distantes. As memórias vão me fugindo lentamente, os dias vão me cercando cada vez mais e as palavras nao me facilitam a vida. Estou preso.
Tento olhar para trás e ver onde errei. Tento entender em que momento eu me deixei chegar a este ponto. Passou tudo muito depressa e eu fui levado pelo abismo mesmo antes de me aperceber que estava a caminho dele. Fiz tudo errado.
As minhas férias começaram já faz algum tempo. Têm sido dias longos e cheios de vazio.
O sol vai subindo o horizonte e o meu corpo é incapaz de largar a cama. Estou condenado.A tua última carta nao me facilitou a vida. Trouxe me tanta coisa à memória.
Estou a definhar. E a noção e consciência de tal só vai piorando cada vez mais as coisas.
Às vezes paro um pouco e tento lembrar-me quando cheguei aqui, como me deixei chegar a este ponto. Sou uma desilusão a todos os níveis.
Tento fugir dos pensamentos destrutivos, das noites sem dormir, das lágrimas que teimam em sair e da frustração que me enche o peito com erros.
Eu só peço momentos de paz, mesmo que estes sejam curtos. Preciso de horas em posso estar livre de tudo o que me atormenta, preciso estar livre de mim. O álcool tem ajudado nisso mas não é algo que me orgulhe, no entanto.O pior de tudo é que não dá para fugir. Eu vivo em mim. Estou aqui vinte e quatro horas por dia e não há escape possível. Tento dormir longas horas para me ver livre de tudo, mas a cabeça não deixa e dou por mim deitado a maior parte do dia, acordado e infelizmente lúcido.
Tento arranjar maneiras de me livrar de mim. Ocupo me de livros que me lembrem bons momentos, sigo o teu concelho e esforço-me para escrever, nem que seja um pouco, mas qualquer coisa que faça, qualquer sítio para onde vou deparo-me comigo. E não há escape, não há solução. Sou aprisionado em mim mesmo.
Excessos têm me vindo a destruir. Apercebi-me que não sei dosar medidas. Ou estou sóbrio ou bêbado de cair. Não consigo me arranjar de outra maneira. Eu sei que issonão me faz nada bem mas não consigo evitar. E, por mais triste que seja, não me consigo suportar em nenhum dos estados. É agonizante.
Concordo totalmente com o teu amigo Júlia. O esquecimento é inevitável, por mais que nos custe aceitar tal coisa. Não há muito que possamos fazer e acho que o melhor é nos conformarmos com isso o mais cedo possível. A conformação chega um dia com o tempo... ou talvez não. Não me resta mais nada para acreditar.
Não tenho muito mais que escrever aqui. Nada parece mudar. Os dias são todos iguais, vazios e sem significado algum. São inundados por lágrimas frias, cobertos com pó e escuro, preenchidos com café e livros e desgastados com pensamentos profundos.
Estou novamente na varanda rodeado por frio e a observar tudo. Tenho um livro aberto à minha frente e o papel da carta está aos poucos a acabar. Não me resta mais nada.
À uns dias estive na casa do meu pai a tentar dar feito a todas as suas coisas. Não fui capaz. Aquele lugar parece uma cápsula no tempo, um refúgio e uma gaiola de memórias. Sou incapaz de me livrar de tudo aquilo. Sei também, que não me cabe tal tarefa. Mas sinto me na necessidade de pelo menos tentar arrumar as suas coisas, guarda-las e deitar fora algumas que não sirvam nem para utilizar nem para imortalizar a sua presença no espaço. O meu pai sempre criticou muito o afinco dos seres humanos aos bens matereais, mas a verdade é que nem mesmo ele foi capaz de se livrar de um único gancho ou sapato da minha mãe. Nada saiu do sítio. Desde as suas roupas, aos seus pertences, os seus livros e até mesmo os bilhetes e recados que ela escrevia e estavam pendurados no frigorífico e na secretária.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...