Capítulo 14

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Gotemburgo, 7 de julho 1998

Minha doce Júlia,

Espero que as tuas férias tenham chegado da melhor maneira e que estejas a aproveitar tudo de melhor que Lisboa tem para dar.
Eu recordo-me de praticamente todas as expressões que tinhas por hábito utilizar. Ficaram todas gravadas a punho na minha cabeça, e por incrível que pareça não foi algo propositado. Sempre considerei que o meu cérebro se "abria" mais cada vez que falavas. Sempre ouvi e li tudo aquilo que dizias e sentia-me fascinado por o fazer. És sem dúvida uma jovem engraçada.
Acorda o mais cedo possível e não deixes que nenhum segundo dos teus dias seja desperdiçado ou não consumado a fazer da tua jornada algo ligeiramente mais incrível daquilo que já é.

Compreendo perfeitamente aquilo que quiseste dizer sobre tudo ser muito controverso à nossa volta. Talvez isso seja a verdadeira realidade. Tudo é demasiado subjectivo, tudo é demasiado controverso, tudo é demasiado abrangente, mas de qualquer das formas continuamos todos a levar esta vida de uma maneira demasiado linear e própria. Porquê? Nunca consegui compreender.

A solidão talvez seja uma dessas coisas.Uns vivem-na por opção e outros por não ter escolha. Agora que penso, já vivi das duas e posso constatar que nenhuma delas é agradável!

No entanto, não há nada que me deixa de coração mais cheio do que as tuas doces palavras, minha Júlia. Eu devo-te tanto. Nem imaginas. Tu és tudo o que eu tenho e muito provavelmente tudo o que eu preciso. Apesar da solidão toda que este frio sueco me emana eu tenho o mais brilhante e quente raio de sol a escrever-me todas as semanas e não há coisa mais poderosa do que isso. Nenhuma dor irá dia algum superar a força que me dás, penso que também não seja necessário dizer-te.

Anseio que as as tuas férias estejam a ser vividas da melhor maneira. Estive ainda ontem a tratar, no hospital, para combinar também as minhas. Talvez, o máximo que vá fazer em cada dia das mesmas, seja ler um livro empoeirado das imensas colecções do meu amado pai, ou passear nos parques públicos que Gotemburgo possui em cada canto. é uma das melhores coisas que tenho nesta cidade cinzenta.

O sol, chegou por fim e de uma maneira intensa. Sinto o corpo a aquecer, o calor a me possuir mas toda a presença e alma que tocava a minha pele debaixo dos raios escaldantes de Lisboa não é a mesma desta cidade. O que eu daria para estar aí.

Não consigo perceber bem aquilo que será ser professora. Fico feliz pela tua aluna. Creio que ela irá adorar a experiencial. Na minha altura, ainda tomei conhecimento de alguns colegas que ingressaram nessa fantástica aventura. Creio ser uma experiência para além do extraordinário. Penso que prepara os jovens a outros níveis e que lhes abre muitos horizontes. No tempo da faculdade, tive amigos meus que realmente quiseram experimentar e o testemunho deles não podia ser melhor. Desejo à tua aluna a melhor sorte do mundo.

A escrita sempre foi um refúgio tu sabes disso. Não só para ti como para muitas outras almas espalhadas por esse mundo fora.
Fazes muito bem em agarrar algo para que sempre tiveste tanta habilidade e usar isso como uma fuga ás tempestades emocionais que se formam cada vez mais à nossa volta sem uma saída à vista.

A poesia Júlia! O meu deus... Como eu me lembro das vezes que debatemos este tema. Tu nunca foste uma grande apreciadora e o nosso gosto literário debatia-se fortemente neste aspecto. Lembraste da minha frustração por não conseguir compreender como alguém era capaz de não gostar de T. S. Eliot.
Na prática, tu não 'desgostava' dos meus poetas prediletos maa não conseguias olhá-los da mesma forma como eu o fazia. Divergiamos ttanto nesse aspecto.
Eu era um melancólico e um auto destruidor e tu, oh tu minha doce Júlia eras uma apaixonada e uma amante persistente, uma sonhadora e uma alma livre como nunca houve igual.
Por isso mesmo, eu via a poesia como um escape para a tormenta e tu como algo belo que deveria servir para louvar o bom da vida. Nenhum de nós estava errado, na verdade.

Por falar nisso, tenho imensos livros aqui guardados que te posso enviar se quiseres. Muitos deles são mais antigos que a nossa própria existência mas ainda assim merecem uma opurtunidade. Vou fazer uma seleção dos melhores e nao tardarei a enviar-te algum.

Ando com muita dificuldade para dormir. Não consigo entender porque. A insônia abraça o meu cporpo à noite e nao o solta até que ele fraquejar. Está ser difícil.

A minha cabeça nao para nem por um segundo e pensamentos da madrugada sao ainda mais destrutivos. A insonia é a vingança da mente por todos os pensamentos que evitamos durante o dia.

Tento passar o tempo sentado na varanda a ler e a fumar uns cigarros. Nem sei o que é pior mas ao menos assim preencho a cabeça e tento fugir destes diluvios mentais.
Arrependo me ja de muitas coisas que tenho vindo a fazer. Excessos são armas mortais lentas e eu estou cercado delas.

Deveria parar um pouco. O meu corpo grita por ajuda e eu tenho bem a noção disso. Preciso de tirar uns dias para mim e relaxar a cabeça mas nada à minha volta parece acompanhar a minha vontade de parar. Está tudo a acontecer muito rápido e a correria das ruas e do mundo começar a assustar-me.

Talvez a maior parte das vezes que nao consegui levar a cabo uma boa noite de sono, tenha sido causada pela ausência de paz e excesso de preocupações.

O meu trabalho esgota-me a tantos níveis, não consegues imaginar. Às vezes chegoa casa e penso se aquilo que acabeide vivee foi um dia ou um pesadelo. Sou demasido sentimental para ser médico, começo agora a aperceber-me disso.

É relativamente tarde. Agora gosto mais de escrever as cartas de madrugada. Eu fico aqui muito tempp sentado na mesa da varanda a olhar as ruas. Acalma me nestas horas. Sou acompanhado pelo frio que se faz sentir, pelos meus cigarros, por um copo de vinho e papel e caneta.
Apesar de tudo, sabe bem estas horas de vazio.
O tempo congela o mundo em volta nestas horas. Sinto que só eu existo e aqueles são os meus momentos. Existo somente eu ali, onde escrevo o que sinto e não sei dizer, onde penso naquilo que não sei ver e onde vivo cenários que não sei esquecer.

Será isto solidão?

Como vais Júlia? O que tens tu feito nestes dias de férias? Quais sao os planos de aventura que criaste desta vez? Estou curioso.

Amanhã ainda trabalho. Depois nem sei. São quatro da manhã e começo a pensar porque quero eu tanto parar de trabalhar se isso é a única coisa que eu tenho para ocupar a cabeça.

Como vou fazer eu para fugir aos dilúvios mentais se estiver vinte e quatro horas por dia desocupado e vulnerável?

Do teu amoroso nórdico,

Hans Andersen


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