Capítulo 2

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Gotemburgo, 10 março 1998

Minha doce Júlia,
Perdi a conta de todas as vezes que tentei Escrever-te, das vezes que me Agarrei à caneta preta de coleção do meu pai e tentei passar para o papel algumas das coisas que te queria dizer.

Nunca fui bom com as palavras e tu sempre me conseguiste ler melhor que ninguém.
Depois destes anos todos uma simples carta tua ainda me consegue fazer feliz de uma maneira que mais ninguém consegue.

Foram 8 anos sem uma única carta Júlia. Sem um único pedaço de papel. 8 anos sem ti e eu não sou o mesmo.
Foram 8 anos em que eu não tive a coragem necessária para te falar, 8 anos em que fui fraco, deixei o orgulho dominar-me e deixei que a minha própria essência se apagasse! A culpa foi da tua ausência.
Tu sabias perfeitamente que me fazias brilhar, que me fazias entender quem realmente eu era; por isso mesmo dizia que tu fazias parte de mim.

Desculpa por todo este tempo.
Nós sempre dissemos que não era a distância nem o tempo que nos iria conseguir afastar. E de certa forma não foi. Fomos nós mesmos... A vida correu à nossa frente e deixamos que ela nos levasse reféns.

Hoje é o dia. 14 anos precisos após a primeira carta que te escrevi. O papel continua o mesmo; a caneta de colecção também; o perfume espalhado no papel que tanto gostas vai o mesmo (nunca me atrevi a trocar de perfume visto que tu dizias que me "vias" quando o cheiravas); a minha caligrafia, por mais cansada que esteja, parece-me a mim que também ela está igual. A única coisa que mudou é o Hans que te escreve. Não é o mesmo há muito tempo. Já não era o mesmo após te conhecer, há 14 ano atrás e após a tua ausência nestes últimos 8 anos, mais irreconhecível está.

Não me reconheço Júlia. Éramos tão jovens e inocentes, com sonhos ainda mais irrealistas, como tu disseste. Confesso-te, nunca pensei em te ver falar assim dos sonhos, logo tu Júlia "a minha eterna sonhadora". Onde está essa tua inocência e alegria? Onde está a Júlia de 18 anos que tinha o mundo inteiro a seus pés? Que acreditava, sonhava e lutava. Que me dizia nas suas cartas que somos nós que escrevemos a nossa vida.
Era disso que eu tinha medo nestes 8 anos: que ambos tivéssemos mudado, coisa inevitável.

Nunca voltes a dizer que és uma escrava das consequências, uma esquecida da vida, porque a Júlia que eu conheci fazia da vida a sua própria viajem.
Como é triste olharmos-nos ao espelho agora. Agora que percebemos o quanto mudamos e o quão diferentes estamos.
Conseguimos tornar-nos nos monstros que nos assombravam aos 18 anos.

Sou médico Júlia.
Alguma das ambições consegui realizar. Mas de que me serve isso se todos os dias acordo e não consigo encontrar motivação para seguir com a vida para a frente.
Sinto-me preso numa sociedade em constante mudança. Como se eu andasse sempre em frente, visse o mundo ao meu redor a passa depressa, como as árvores que parecem correr ao olharmos pela janela do carro em movimento, mas não saísse do sitio, numa eterna passadeira, que me engana constantemente, fazendo-me acreditar que estou a progredir mas que não me leva adiante.

Como vai a tua vida? Lembro-me tão bem da tua insaciável vontade de ser hospedeira. Do quanto me falavas dos sítios que querias ir e das coisas que querias fazer.
Por favor Júlia não deixes que o teu brilho se apague, logo tu a maior estrela portuguesa

Do teu amoroso nórdico,

Hans

TransversusOnde histórias criam vida. Descubra agora