Capítulo 5

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Lisboa, 10 abril 1998

Caro Hans,
Consome-me a culpa de não ter estado ao teu lado nestes últimos 8 anos, agora mais que nunca. Apesar de ter consciência que foi as escolhas na vida que nos levaram até esse ponto, arrependo-me amargamente não ter estado ao teu lado nesse momento tão triste que haverá sido a morte do Sr. Sven, que tu sempre falavas com tanto carinho.

O seu rosto claro e acolhedor espairece levemente pelos meus pensamentos quando tento relembrar o único dia que tive o prazer de o conhecer. Pareceu-me um ser tão correto e cheio de amor para dar.

Oh meu Hans, se há coisa que deves dar valor e pensar agora foi em todo esse amor que ele deixou cá, que te entregou e fez de ti o fantástico homem que és.
Orgulho-me da maneira como lidas com tão forte dor e como refletes as coisas boas que cá ficaram por ele, e que para sempre vos ligarão.

'O nórdico apaixonado por Lisboa' foi uma das frases que usavas constantemente. Eu sempre adorei essa tua maneira de falar, de usar as palavras, de brincar com os sentidos e dessa tua cultura insaciável. Tu sempre foste atraente e sempre me atraíste de todas as maneiras possíveis.

Em ti eu não vi só a beleza, a estética, a cordialidade mas também o espírito seguro, firme, apaixonado. Esses teus olhos azuis espelho, que me deixavam ver tudo aquilo que eu sempre fora privada, que me deixavam sentir cada palavra que expressavas eram algo mágico; era uma poesia tirada dos livros da mitologia nórdica; eram fogo ardente na cor do frio gélido.

Em ti eu vi inteligência, capacidade de comunicação e uma Enorme possibilidade de viver. Porque viver não se trata apenas de respirar, deixar o coração bater. Viver trata-se de sentir, imaginar; deixar que o vento nos leve e que nos traga o possível. Ouvir o som das mais miserável coisas e prestar atenção no que isso significa. Trata-se de buscar respostas nas perguntas e questionar-se com as respostas. Trata-se de ver o mundo e recriar a existência; inventar; construir. Construir-te a ti mesmo, ser capaz de fazer de ti alguém capaz e viver será sempre muita coisa para além de respirar.

Eu vi tanto em tão pouco de ti Hans e oh... Como isso bastou. Porque tu, eras a vida. A vida que eu buscava ter, os sonhos que eu desejava concretizar, o mundo que eu desejava possuir. Tu eras isso tudo e tu estavas ali: à minha frente. Sentado naquela mesa de ferro, numa modesta esplanada a olhar as pessoas apressadas que passavam no Rossio em direção às suas vidas, que tu tentavas adivinhar quais eram. Eu estava ali, a olhar fundo para os mais simples e belos olhos azuis que me abriam para a vida. Eu estava a olhar para o amor e quem diria que apenas uns simples olhos eram o espelho para a vida. A minha vida. Tu, Meu Hans.

Nunca nos esqueceremos de tudo o que vivemos, e ainda hoje me pergunto como é que somente nós éramos tanta coisa um para o outro. Nós não nos assemelhavamos, nós completavamo-nos e isso era a melhor sensação do mundo.

Sempre me chamas-te sonhadora desde o primeiro dia que me pagas-te um café e eu havia te prometido levar a comer 'um desses pastéis doces que todos os portugueses falam' e que ainda hoje te estou em dívida para pagar essa promessa; e esse teu apelido certeiro e carinhoso com qur me apelidavas, iludia-me a acreditar que tu eras um terra-à-terra. De certa maneira assim o eras mas eu gostava de ir desvendando essa tua magia de criança que te corroía a pela e que eu sei que tu tentas-te a todo o custo matar.

Nessa tarde tínhamos conversado tanto e desde aí entendi que éramos o duo ideal, os temas surgiam naturalmente e por isso sempre acabávamos a falar dos mais diversos assuntos. Partilhando sempre opiniões opostas, que no final de toda uma profunda analise bem ponterada acabavamos sempre por ir ambos a parar ideias semelhantes. Desde essa tarde eu apercebi-me que o Hans não era só um espelho para a vida, nem era só a Vida, ele era também alguém que sabia viver e que me fazia sentit viva.

Como eu tentarei a partir de agora não deixar de lado tudo aquilo que faz de mim quem sou, deixou por trás desta carta uma passagem do livro que eu segurava nos braços, cada dia que nos amámos ingenuamente e que caímos para sempre na prisão da vida chamada, paixão.

Esse livro que nunca mais haverá saído da tua cabeça e que fez esse nórdico vivo entender tudo aquilo que passava na cabeça da estrela portuguesa mais brilhante, é uma das nossas maiores ligações.
Esse livro que eu tanto amava tornou-se uma porta para mim, para Portugal, para nós dois e ainda hoje eu aguardo o meu exemplar de Drottningens juvelsmycke, que tu sempre me contavas o quanto gostavas dele e onde eu percebi o eterno apaixonado que tu, pela sombra, revelavas ser. A partir de agora iremos cumprir com as promessas e com os bons velhos hábitos. Aguardo o meu Hans apaixonado dos livros de romance e policiais, fascinado pelo mundo e culto na Cultura, educado na prestação! Não te esqueças que espero pelo jóia de rainha (Drottningens juvelsmycke) visto que hoje será o dia de começar a fazer as coisas que a vida nos fez deixar para trás.

A partir de agora voltaremos a ser os jovens da Vida e da interminável vontade de amar. Porque semore nos amámos de maneiras tão simples, sem fazer sentido a olhos estrangeiros, mas que para nós, era o bastante para a felicidade.

A partir de hoje esqueceremos todo o tempo que passou e voltaremos a ser quem realmente somos. Eu, Júlia e tu meu Hans
Da tua eterna sonhadora,

Júlia Severo

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Mas nunca gostei de lavouras nem de cuidar da casa onde são criados ótimos filhos; de lanças polidas e de setas coisas terríveis, diante das quais outros homens ficam arrepiados, Mas um deus fê-las agradáveis ao meu espírito: homens diferentes se comprazem com diferentes trabalhos.

Homero, Odisséia III: Ítaca

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