***Lisboa, 12 de agosto 1998
Querido Hans,
Muito sinceramente não sei como responder devidamente à tua carta. Já a li e reli um número significativo de vezes e continuo sem saber o que dizer. Penso que não me sei expressar a um nível tão delicado, coisa que sempre me pareceu muito difícil. Nunca fui pessoa de ficar sem palavras, ao contrário de ti. Parece que, muitos anos depois, os papéis acabaram por se voltar. Tu estás no meu lugar, a relatar o que te vai na mente, a expressar em palavras as amarguras e a arranjar maneira de dar vida aos sentimentos; e eu estou no teu lugar, sem saber o que dizer, ou melhor, como o dizer. Apesar de sempre teres escrito muito bem, tu eras do real, daquilo que a vista alcança. Nunca conseguiste escrever mais do que te limitavas a ver, o que não era necessariamente mau. Anos se passaram e agora aqui estamos nós. Fico contente que tenhas conseguido expandir os teus limites e imensamente triste pelas circunstâncias que te levaram a fazê-lo.
Há muito coisa que sinto vontade de te dizer e muito poucas maneiras de saber como o fazer. Oh Hans...
Não há pessoa nenhuma neste mundo que não tenha dentro de si um chama que grita por ajuda. É no entanto nosso dever, fazer com que a luz e calor emitidas por essa persistente chama, se apague. Não podemos deixa-la tomar conta de nós, porque quando e se isso acontecer, será tarde demais.
Recuso-me a aceitar que foste tomado por ela Hans. Acredito que és mais forte que isso e que irás ultrapassar, tens que ultrapassar.
Para ser sincera Hans, durante muito tempo tive uma ideia errada de ti. É com o tempo e com as circunstâncias que vamos realmente conhecendo as pessoas.
A vida é o oleiro e nós, a massa de moldar. Lembraste de um dia me teres dito que eu era uma flor? Bem, a situação aplica-se aqui também meu Hans. Por mais moldados, estragados, amassados ou destruídos que estejamos. Nunca, nem por um mísero instante, deixamos de ser quem verdadeiramente somos. Por isso digo-te e repito se necessário. Continuas a ser o Hans. O decidido, realista, audaz, ambicioso, apaixonado e forte. Cheio de vida dentro de ti e capaz de tudo. Com uma coragem inalcançável e um coração bondoso como não há igual.
Mereces bem mais do que gritos e choros de protesto. Mereces mais do que noites em claro e dias cinzentos cheios de vazio. Mereces mais do que livros empoeirados e escuro. Mereces mais do que momentos desalinhados por tabaco e álcool. Tu mereces bem mais Hans...
Sempre te admirei muito. Nem imaginas o quanto. Sempre falei de ti com o maior orgulho. Como se fosses o meu bem mais precioso. Foste aquele que encheu e aqueceu o meu coração durante anos a fio. O único que foi capaz de entender tudo o que eu nunca tive coragem sequer de dizer. Tu sempre me leste tão bem Hans... Às vezes, as palavras nao são a melhor maneira de expressar o que sentimos, o que pensamos e o queremos dizer. E são poucas as pessoas capazes de entender isso. Tu eras uma dessas raras exceções, tens noção do quão fantástico isso é?
As palavras sempre foram um grande mistério para mim. Uma ajuda por vezes e um entrave em outras situações. Ás vezes considerava que tinha jeito para elas e outras vezes achava que não entendia nada acerca das mesmas. Palavras não são exactas e por muito que certa gente não entenda, elas não têm significado. Elas são subjectivas, desfasem-se, constroem-se. Sem nós, palavras não valem absolutamente nada. Somos nós que lhes vamos dando valor, porque elas sozinhas, não possuem valor algum. As palavras não vivem sem nós e nós não vivemos sem as palavras.
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Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...