***Gotemburgo, 30 de agosto 1998
Júlia,
Já faz alguns dias que recebi a tua carta, mas só agora tive a oportunidade de me sentar calmamente, refletir e pensar acerca das coisas que tinha para te dizer.
Muita coisa aconteceu neste curto período de tempo.
Tenho andado completamente à toa e os acontecimentos destes últimos dias foram demasiado intensos para me premitir pensar noutra coisa.Depois de te enviar a última carta, as coisas só pioraram.
Os dias tornaram se cada vez mais pesados, as noites cada vez mais longas e os momentos cada vez mais vazios.
Comecei, cada vez mais, a cair num caminho sem volta.Não sinto necessidade, por muito estranho que pareça, de continuar a escrever.
Mantive um diário durante alguns dias. Onde escrevia pormenorizadamente os acontecimentos do meu dia a dia. Mas, a certo ponto, tudo o que eu tinha a encher as páginas grossas eram descrições audosas de sentimentos profundos, um tanto de mágoa à mistura e algumas manchas de lágrimas derramadas sobre o papel seco.O trabalho começou e nem mesmo isso foi capaz de me conseguir chamar novamente à vida. Eu estou cá, mas não me sinto cá. Há muito que abandonei este mundo e o que resta aqui do meu antigo eu é um corpo cansado e oco, sem significado absolutamente nenhum.
Prolongo os meus dias na terra e arrasto o meu corpo morto pelas ruas desta cidade.Já nem a própria cidade me consegue dar vida. Eu sou só mais uma sombra que se arrasta pelos seus cantos, à semelhança de mais milhares de pessoas. Já não sou mais a alma viva que fazia dela a sua verdadeira casa e que procurava a todo o custa imortaliza la no coração. Chegará um dia Júlia, que já nem mesmo os lugares permanecerão para imortalizar as memórias. Não há nada que predure neste mundo. Não nos resta nada para depositar esperança. Nem as pessoas, nem os lugares e muito menos os sentimentos. Tudo é passageiro. Assim como tudo aparece num súbito rompante do respirar, tudo vai apressadamente embora, demolindo o restante que sobra da sua passagem. Somos pequenos fragmentos do tempo. E um dia, seremos erudidos deste universo como se nunca houvéssemos passado por aqui, assim como as testemunhas da nossa passagem.
Metade de mim desapareceu há muito tempo mas eu permaneço de pé a suportar sobre os ombros um peso tamanho.
As mais pequenas tarefas começaram a tornar-se impossíveis de serem praticadas. É um sentimento de impotência constante e uma dificuldade imensa para tirar até um pé da cama.
Sinto-me inútil e ferve em mim uma vontade de dar rumo diferente às coisas. Falta-me a coragem, no entanto.
Sinto que qualquer atividade que planeie fazer, fora da rotinado de fracassado, é um desafio árduo ao qual eu estou redondamente destinado ao fracasso.Na minha mente apenas ecoam vozes desconhecidas, palavras amargas e o eco do som do vento que bate nas portadas constantemente.
Por norma, as escassas horas de paz que vivo durante os dias são aquelas em que não me encontro em mim, aquelas em que viajo por mundos distantes e não estou autorizado a viver a ligação corpo-mente. São essas poucas horas de sono que tenho permissão para ser eu mesmo, longe de todos os monstros tamanhos que me ameaçam constantemente.
No inicio eram pequenas coisas. Coisas insignificantes que eu perdia tempo a pensar e que me causavam só um pouco de desconforto, algumas dores de cabeça, stress acumulado e que me tiravam algumas horas de sono. Com o tempo, essas mínimas coisas tornaram-se entraves a qualquer acção banal que eu tente realizar.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Transversus
Любовные романыNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...