***Lisboa, 15 de julho 1998
Meu amado Hans,
Os dias estão cada vez mais longos, mas não cansativos. O calor já se afirmou por aqui e as únicas horas que sabe bem sair à rua é pelo final do dia, quando o sol se despede.
O rio está mais bonito que nunca, irias adorar estar aqui de momento. É impossível passar por ele e não te ver em cada canto.
As águas do Tejo trazem consigo tantas lembranças, e tu és um dos nomes gravados em cada gota de água. És uma das imagens refletida em cada sombra e um dos cheiros trazidos pela brisa do mar.
A cidade está alegre. Os turistas espalham-se aos molhos por cada canto e as luzes quentes no ar aquecem o coração de qualquer um. É uma cidade de luz e calor, ninguém onpode negar.
Tenho tentado aproveitar os meus dias para sair de casa e preencher a cabeça com mais alguma coisa para além de pensamentos destrutivos. Tem sido difícil, mas aos poucos vamos lá, é preciso pensar assim Hans.A tua dificuldade para dormir talvez se deva ao stress em excesso. Tu precisas de parar. Acalmar o corpo e descansar a cabeça. Não consegues aguentar tudo Hans...
Acho que deverias viver mais a vida, pelo menos tu Hans, pelo menos tu...
Sei que não é assim tão simples, mas tenta sair mais, tenta aproveitar mais os teus dias e tenta fazer com que não sejas só tu, eu e o papel tinjido a dar sentido à tua vida. Tu mereces bem mais que isso...Enquanto tu lutas para conseguir adormecer eu luto para me manter acordada e para ser capaz de fazer qualquer coisa para além de dormir, beber café, escrever e pensar.
Estive à uns dias em Coimbra, na casa da minha irmã. Ela está mais feliz que nunca. Engraçado como há gente que consegue tudo em tão pouco tempo... A Alice tem sorte. O seu sorriso está mais vivo que nunca. Os dias cinzas que passam por ela parecem não ser tão cinzas como antigamente e a luz que ela irradia é maior do que em qualquer outra altura. Está bonita. A gravidez está a correr muito bem e tudo em sua volta parece estar nos eixos. A gravidez já vai nos 5 meses e nos dias em que passei lá, fiquei a saber que vou ser madrinha de uma menina. Vou ser madrinha Hans! A Alice confiou-me esse cargo, e muito honestamente, estou com grande medo de falhar. Os 'e se' são um grande causador de todas as minhas grandes inseguranças. E se eu falhar?
A minha afilhada ainda não tem nome mas penso que esteja para breve.O Gustavo está radiante. É tao bom vê-los assim. Preenche o coração de qualquer um. Ele sempre quis uma filha e é bom saber que estão os dois tão felizes. Eles merecem.
Os meus dias têm se passado lentamente. Parecem todos iguais. A rotina faz falta, apercebi-me agora disso.
Quem diria que em dia algum eu viria a dizer isto. A rotina faz falta, quando durante tantos anos a repudiei.
Apercebo-me agora, por fim, que muitas das coisas que queremos longe de nós acabam por nos vir a fazer falta um dia. Daí, é sempre importante ter em conta que devemos dar valor às coisas na hora certa e não quando já é tarde demais.Agradeço todos os dias, por ter tido a coragem de te voltar a escrever Hans. Não consigo imaginar naquilo que seria da minha vida agora se não tivesse as as tuas belas cartas para me preencher todo o vazio, oh Hans...
Cheguei agora da rua. Fui dar uma volta até Belém. Queria te ter aqui comigo...
Vaguear sozinha por estes caminhos parece não ter tanto sentido agora. Agora que já não procuro ninguém, agora que a liberdade se foi e agora que a felicidade se escapou por entre os dedos. Agora que já nada mais parece fazer sentido.Os sítios permanecem iguais. Não há muita coisa a mudar por estes lados. As pessoas, que os olhos se habituram a ver, começam lentamente a desaparecer... já nem as pessoas Hans, já nem as pessoas...
Os lugares permanecem. São só eles que restam para imortalizar as memórias.
Chegará um dia, em que as pessoas desaparecerão e deixarão de contar as histórias, chegará um dia que a nossa mente já nao irá atuar, e sem pudor, nos mentirá... e lá se vão as memórias, lá se vão as histórias, lá se vão os momentos e lá se vão as pessoas...
Chegará um dia em que o papel se irá desfazer, a tinta se irá apagar e as fotografias serão perdidas. Um dia o chá já não será suficiente e o café já não nos mantirá acordados. E dessa forma, chegará um dia em que tudo acaba.
Custa perceber um dia que não existe eternidade em nada.Uma vez tu perguntaste-me de que tinha eu medo. E eu, na inocência, respondi que não tinha medo de nada. Ah... como eram belos esses tempos...
Tu insististe comigo, mas ainda assim eu não cedi. Mas, por mais segura que eu possa ter parecido, eu fiquei a pensar. E pensar sempre me destruiu muito. Mas mesmo muito... porque, pensar faz nos perceber do valor da nossa insignificância. E, quando jovens, tudo aquilo que nós não queremos é perceber quea vida não é o quadro colorido a óleo ou aquele filme indie de que todos somos fãs.Eu fiquei a pensar... e pensei de tal forma, que um dia apercebi-me que afinal, eu tinha um medo.
O medo do esquecimento.Medo de que um dia, a memória e a imagem da minha pessoa desapareça por completo do universo. De que os momentos e histórias que eu vivi acabem apagados por completo.
Um dia, um amigo meu disse-me que o esquecimento era inevitável. Eu não concordei. Eu recusei-me a concordar.
O esquecimento não podia ser inevitável e era isso que nos cabia durante a vida: fazer com que fôssemos imortalizados por memórias, por histórias e por lembranças. Cabia nos a nós mesmos provar que o esquecimento era totalmente e completamente evitável.Agora, muitos anos depois, apercebo-me de que eu estava errada e ele, completamente certo.
Porque, querendo ou não, chegará um dia que não restará ninguém para sequer se lembrar de Einstein, de Cleópatra ou até mesmo de Martin Luther King. E se nem mesmo essas pessoas serão lembradas, quem somos nós para achar que seremos?
O esquecimento é inevitável...Sinto falta dos nossos excelentes debates literários devido à poesia. Acho que agora te deixaria impressionada. Sem dúvida mudei muito a minha maneira de pensar. Na verdade, T.S. Eliot tem vindo a cativar a minha atenção. Penso que isso te deixará surpreendido. As coisaa têm vindo a mudar, portanto.
Acho que deverias procurar algum conforto nos livros, ou melhor ainda, na escrita. Tu tens um imenso potencial para as palavras, escondido sobre amarguras. Podias tentar libertar um pouco dessa angústia e desses pensamentos destrutivos para o papel. É um escape Hans, confia em mim.
A tua vida está a precisar de uma reviravolta. Não te podes deixar levar pelo abismo. Tenta lutar contra isso.
Sinto a tua falta Hans, agora mais que nunca. Sinto a tua presença a escapar me, a tua imagem a desaparecer lentamente da minha memória, a tua voz a largar os meus pensamentos e o teu cheiro a desfazer se lentamente das cartas. Oh Hans...
Está a entardecer e o sol começa a pôr se. Estou a pensar em aceitar o convite de uns amigos da faculdade e vou jantar fora. Acho que me vai fazer bem.
Estou preocupada contigo Hans, muito preocupada.
Espero que saibas que estou sempre disponível para ti. Tens o meu número de telefone, não exites em utilizá-lo se precisares.Da tua eterna sonhadora,
Júlia Severo
***
I said to my soul, be still and wait without hope, for hope would be hope for the wrong thing; wait without love, for love would be love of the wrong thing; there is yet faith, but the faith and the love are all in the waiting. Wait without thought, for you are not ready for thought: So the darkness shall be the light, and the stillness the dancing.
T.S. Eliot
VOCÊ ESTÁ LENDO
Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...