***Lisboa, 1 de julho 1998
Querido Hans,
Sinto que demorei muito para te escrever uma resposta. Desculpa-me. O tempo não tem sido um grande aliado nestas últimas semanas.
Estou prestes a entrar de férias. Somente mais três dias e poderei acordar às horas que me apetecerem. Sei, por antecedência, que não serão muito diferentes das habituais. Nunca gostei de dormir muito. Era costume eu dizer que dormir muitas horas bloquiava o meu processo criativo. Eu era uma jovem engraçada, não haja dúvida.
Meu adorado Hans, nem sei o que te dizer. Deverias ter visto a cara de desconsolada que surgiu no meu rosto quando li as tuas palavras. A solidão é um veneno. Tu tens esse elixir dentro do teu sangue mas, por incrível que pareça ele não surge a qualquer hora.
Sempre me perguntei, ao longo de toda a minha jornada, o porquê de as coisas acontecerem na altura errada. Já alguma vez prestaste atenção no quão controverso é tudo à nossa volta. Fico indignada por vezes, tenho a dizer te.Eu estarei sempre aqui, penso que nem preciso de o dizer.
O teu trabalho é importante, eu sei, também muito cansativo mas tens que ter forças. Foi para isto que estudaste tanto e para que, ao longo da tua juventude, tanto te esforçaste. És o meu orgulho, a todos os níveis possíveis.Os alunos já se foram embora faz já duas semanas. Custa me tanto. Ainda ontem me cruzei, por um feliz acaso com uma aluna do 12° ano no supermercado. Ao contrário dos mais novos e mais revoltados, ela não fugiu de mim. Por norma alguns deles tendem a ter esse tipo tipo comportamento, nunca entendi bem porquê. Eu não era assim da idade deles. Mas o que é que eu sei sobre a sua geração? Nada.
Ela revelou me que está a pensar a fazer Erasmus. É uma aluna com um futuro promissor e demasiado séria, acho que é uma actividade que a irá enriquecer a todos os níveis.
É bom ver estes jovens a procurar maneiras novas de viver os seus sonhos e de realizar bons planos profissionais. Quem me dera a mim ter tido esse tipo de informações e disponibilidades na minha altura.
É bom vê-los cresceram e ganharem asas. Mas confesso, sinto-me como uma mãe galinha a deixar ir embora, lentamente as suas crias. Dói. Mas vai passar, tem que passar.Ultimamente tenho me acalmado muito a escrever. Tu sempre disseste que gostavas de me ouvir falar e que eu tinha algo de diferente. Eu gostava de conversas para além do banal onde a visão alcança e, por sorte, tu foste a única pessoa que alguma vez encontrei capaz de me acompanhar nessas conversas.
Ouvias tantas vezes e atentamente as coisas 'filosóficas' que eu dizia quando nos encontravamos para ver o por do sol. Sentados na areia eu metia-me contigo e com a tua seriedade perante todos os assuntos. Eu achava isso tão engraçado e não havia sorriso mais bonito por debaixo daquele sol de cores quentes. Era tudo tão prefeito na altura.Não gostava de escrever poemas. Limitava aquilo que eu queria dizer e os gritos que queria dar, mas apreciava-a na leitura e era apaixonada por Fernando Pessoa. Não houve muitas coisas que mudaram entretanto, afinal.
As histórias de mundos mágicos e críticas de que, naquela altura ninguém tinha coragem para ouvir nem concordar eram algo que me perseguia muito. Eu guardei durante muitos anos ideias que me corriam e sempre achei que se havia alguém que as gostava de ouvir deveria, certamente haver alguém que as gostasse de ler.
Portanto, tenho encontrado algum tempo de qualidade a escrever alguns contos infantis e histórias para jovens adultos. Eu não os percebo muito bem mas tenho certeza de que ainda sei daquilo que gostam.
Agora que reparo, pareço uma senhora de idade a falar. Que é feito de mim também Hans? Às vezss sinto-me tão diferente mas nem sei bem em quê. Estou perdida.Fazes bem em ir passear. Precisas de abstrair a tua mente dessas coisas que te perceguem, só te fazem mal e muitas vezes não têm qualquer sentido. Eu sei bem como é.
Ainda bem que dizes isso. Com essa promessa de me levares ao Trädgårdsföreningen continuamos ambos com promessas por cumprir. Sendo assim, não me sinto tão inferiorizada. Tu falaste me desse lugar numas das primeiras cartas que trocamos. Lembro-me tão bem da maneira sonhadora com que descreveste aquele magnífico lugar cheio das mais belas plantas. Achei curioso, porque o Hans da altura não era muito ligado a essas coisas. Entendo agora, por fim.
O teu pai era um homem sábio, concordo a 100% com aquilo que ele disse.
Essa foto de que falas, mostraste-me quando fomos ver o nosso último por do sol. Foi uma das melhores tardes da minha vida e lembro-me como se fosse hoje, por mais clichê que possa soar. Foi como se a praia de Algés se tivesse iluminado somente para nós dois, e lembro-me também o quão encantada fiquei com aquela fotografia. Penso que naquela altura nem da aurora boreal alguma vez tivesse ouvido falar. Tu trazias contigo tanta coisa interessante. Eu era tão fascinada. Ainda sou, com a pessoa fantástica que tu és, ou melhor, que tu sempre foste.Muito provavelmente irei passar um fim de semana próximo a casa da minha irmã. Obrigada pelo concelho, sei que tens razão, aliás, como sempre.
Eu entendo o que queres dizer. Eu também vivo essa realidade Hans. Tu, por mais incrível que pareça estás sempre lá e eu valorizo muito isso. Nós somos dois rumos distantes de um sopro de vento, talvez nunca mais nos voltaremos a ver. Mas sabemos, que pertencemos ao mesmo lugar e por mais longe que estejamos a nossa essência prevalecerá.
Vou dormir. É tarde e espera me um longo dia de trabalho amanhã. E a confusão que vai nestas ruas está, pela primeira vez na vida a esgotar-me um pouco.
Da tua eterna sonhadora,
Júlia Severo
"Os sentimentos mais genuinamente humanos logo se desumanizam na cidade."Eça de Queiroz
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Transversus
RomanceNuma tarde do verão de 1986 os olhares de Júlia e Hans cruzam-se pela primeira vez. É sob a frescura do rio Tejo e as cores quentes de Lisboa que os dois jovens de 18 anos se apaixonam perdidamente. São esses mesmos jovens que hoje nos contam a sua...