9 de fevereiro de 1970

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Não estou conseguindo pregar o olho uma noite sequer, ainda ando muito atormentada com essa história toda, continuo com muito, muito medo. Meus pesadelos voltaram, mas dessa vez estão ficando piores ainda, tanto é que depois que acordo não consigo mais pegar no sono (nem a base de medicamentos) de jeito nenhum. Então passo o resto da noite escrevendo artigos pro jornal e vendo Aninha e Marcelo dormirem.

Marcelo está preocupado comigo. Muito preocupado. Também, não é para menos, tenho dormido menos de 6 horas por dia, sem contar o tempo que passo acordada pondo Aninha para dormir, não me alimento direito, estou cada vez mais cansada, magra, doente, meus surtos estão ficando mais frequentes, tenho chorado muito esses dias. Tento fazer o máximo para que ele não note que estou assim, mas não adiantou de nada esse tempo todo, e não é agora que vai começar a adiantar, porque eu sei que ele percebe que estou mal, sei, sinto que ele percebe que eu preciso de ajuda, porque me sinto sozinha, mesmo que ele e Aninha estejam comigo o tempo todo.

O fato é que estou mal (sei que já escrevi isso várias vezes, mas não posso negar pra mim mesma), muito mal mesmo, passo a maior parte do dia calada com Aninha, escrevendo, lendo, dormindo ou chorando baixinho escondida num canto da casa para que Marcelo não veja.

E para piorar, o clima na casa de mamãe está mais tenso do que nunca esteve antes. As discussões entre papai e Lucas aumentaram, mamãe está tentando se conter ao máximo para não fazer ou falar nada que a deixe em maus lençóis, ou seja, fica calada o tempo todo, não defende nem Aline, nem Lucas, mas agora também não concorda com nada que papai diz. Pelo que eu soube, a noiva de Lucas, Eliza, foi morta por um "colega" do batalhão de papai durante um protesto lá perto da UnB, diz ele que atirou nela por impulso, que se soubesse que a moça era noiva de Lucas não teria nem apontado o cano da arma pra ela. Tenha Santa paciência! Claro que ele teria atirado nela, sendo noiva de quem quer que fosse, de militar ou não, porque para eles de acordo com as "regras" , Eliza era considerada subversiva, e merecia castigo, castigo esse que poderia ter sido muito mais leve, o que mesmo assim não ajudaria em nada, porque é como dizem: "castigo é castigo", não importa ele qual seja. Pois bem, eles poderiam ter pegando mais leve com ela. Mas não! Ela teve que pagar o futuro do país com a própria vida. Pelo amor de Deus! Basta!

Já Marcelo não aguenta mais ouvir o pai falando que é para ele se juntar aos militares, que isso tudo é para o bem maior da nação, que é tudo em favor da cidadania brasileira. E não só Marcelo já está cansado disso tudo, como eu também estou. Não faço a menor ideia de como estamos conseguindo passar por isso tudo esse tempo todo, mas também é por causa de Aninha ela não merece isso.

Estamos lutando, sim, estamos. Lutando por ela, pelo futuro dela, para que ela não tenha que passar por nada disso, para que seja feliz e livre, como todos nós já fomos livres e felizes antes de 1964.

Queremos apenas que ela fique bem, que se sinta segura para se expressar livremente, sem medo de ser presa, perseguida, torturada ou até mesmo morta por causa das palavras que um dia sairiam de sua boca.

Só rezo todos os dias para que isso acabe e que eu possa ser feliz de novo.

1964 - Diários de um Coração Rebelde Onde histórias criam vida. Descubra agora