1 de abril de 1986

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Ainda bem que isso tudo acabou, todo esse sofrimento, esses 21 anos de choro e de gritos. Só é uma pena que mamãe não tenha vivido o suficiente para ver a abertura política, a "Lei da Anistia" em 79, as "Diretas Já". Enfim, ver isso tudo terminar.

Papai me entregou este caderno há 4 anos, no dia em que me trouxeram de volta pra casa depois de ter passado uns 7 meses trancada numa cela, junto com mais 5 pessoas sendo torturada praticamente todos os dias. Eu só tinha 12 anos, era horrível! Passava noites inteiras chorando, sentindo meu corpo arder e tremer ensanguentado, por causa dos tapas, chutes e choques elétricos.

Ainda me lembro do dia em que me levaram embora. Eram 6:30 da manhã, papai estava indo me deixar na escola quando senti meu corpo ser arrancado das mãos dele por dois militares de grupos extremistas que não queriam o fim da ditadura, os quais alegavam fazer aquilo porque papai era comunista, e que me torturariam se ele não revelasse o nome de seus companheiros.

— Aninha! Não chora, meu amor. Vai ficar tudo bem, eu prometo. — o ouvi gritar aos prantos soluçando enquanto os militares me levavam para longe da única segurança que eu tinha.

Chegamos num prédio que eu presumi ser algo do Departamento de Ordem Politico-Social (DOPS) ou do DOI-CODE. Me largaram numa cela onde haviam mais umas 5 pessoas, 4 das quais, inicialmente, não deram a mínima pra o fato de uma menina de quase 13 anos estar sendo jogada ali, com exceção de Eduardo, um rapaz de uns quase 15 anos, que assim que cheguei lá, veio para perto de mim tentando fazer o máximo que nada , nada mesmo acontecesse comigo.

Os outros 4 com o tempo foram se aproximando mais de nós, fomos nos unindo aos poucos, com medo de que alguma coisa acontecesse a qualquer um de nós especificamente. Eu, por ser a mais nova, era a mais protegida dos 6 que estavam na cela.

Passávamos por sessões de tortura quase todos os dias, como éramos 6, íamos de dois em dois, então haviam 3 sessões por dia. A cada dupla que chegava ,se esvaindo em sangue, era agonia geral, parecia que aquilo não ia acabar mais, havia momentos que eu preferia ter morrido que passar por aquilo mais um dia...

Todas as noites, ao menos as que eu conseguia inutilmente pegar no sono, adormecia no colo de Eduardo pensando em mamãe, em como eu queria que ela estivesse comigo, mesmo que fosse numa sala de tortura, mesmo que estivéssemos para ser entregues às garras da morte, mesmo que acontecesse qualquer coisa, ela estaria ali comigo, para me proteger, dizer que ia ficar tudo bem e que eu já podia parar de chorar. Porque ela ia cuidar de mim.

Eu e Eduardo íamos às sessões em horários diferentes, ele fazia parte da primeira dupla, que ia às 6 da manhã, e eu da última, que ia as 6 da noite. Toda vez que eu voltava machucada, sangrando e tremendo, ele corria, me colocava no colo e me abraçava, passando o resto da noite assim do meu lado, tentando me fazer esquecer aquilo tudo, dormir, e parar de chorar...

Mas graças a Deus, e provavelmente também a um grupo de guerrilha urbana, eu acho, fomos soltos no mesmo dia, e, por coincidência, nossos pais se conheciam. Estavam lá os dele e papai na porta quando vieram nos buscar. Assim que pus os olhos em papai, larguei a mão de Eduardo e corri em sua direção me jogando em seus braços. Chorei como se nunca tivesse chorado na vida, senti o calor de seus abraços de novo, a doçura de sua voz dizendo meu nome, seus braços fortes me protegendo, suas lágrimas suplicando por perdão e prometendo que nada disso aconteceria de novo.

Mesmo depois do que aconteceu, continuei muito próxima de Eduardo, estamos juntos agora, e cada vez mais fomos nos aproximando, mas claro, sem sequer tocar no assunto "tortura".

Com papai foi do mesmo jeito, só conseguiu falar sobre o ocorrido depois dos 13 anos, mas mesmo assim era difícil.

Comecei a entender mais o que estava acontecendo quando ele me deu o caderno de mamãe, e me contou toda sua história de novo, porém, desta vez, mais detalhadamente.

À medida que fui crescendo e formando minhas próprias opiniões, percebi que, de acordo com papai, estou ficando cada vez mais parecida com mamãe, e não só fisicamente, temos os mesmos ideais, opiniões, força de lutar pelo que quer, desejo de ter uma vida melhor e feliz.

Toda vez que me lembro do que aconteceu, sinto uma vontade enorme de largar tudo. Mas sei que não posso, e nem quero fazer isso. Não posso deixar papai, não quero que ele perca as esperanças de novo, foi tudo tão difícil para ele, não quero que passe por isso mais uma vez.

Também não quero deixar Eduardo, ainda mais agora que estamos juntos. Não sei direito como tudo aconteceu, mas o fato é que eu gosto dele e sinto que é recíproco, que ele também gosta de mim. Para falar a verdade, senti isso desde a primeira vez que nos  vimos naquela cela. Desde a primeira vez que pus os olhos nos dele, não queria deixá-lo.

Eu só queria que mamãe estivesse viva, me visse, soubesse que estou bem, que papai está bem, que todos nós que sobrevivemos a ditadura estamos bem, e que estamos vivendo livres e felizes distantes daquilo tudo.

Às vezes papai brinca comigo dizendo que se mamãe estivesse viva, com certeza diriam que somos irmãs gêmeas, e não só fisicamente falando, gêmeas em praticamente todos os sentidos possíveis. Gosto disso, gosto da ideia de ter essa ligação tão forte com mamãe, do mesmo jeito que tenho com papai e Eduardo. É uma sensação boa, saber que tudo está indo bem, tudo de acordo com seus planos, do jeito certo, do jeitinho que você queria e sonhou que fosse.

Papai e Eduardo sempre fazem o máximo pra me proteger, mas não é aquele tipo de proteção obsessiva.

Às vezes ele diz a Eduardo que seriam bem parecidos quando papai era mais novo, que fazia as mesmas coisas que Eduardo fez comigo pra proteger mamãe, e eu sinceramente gosto disso, dessa coisa toda de tudo se encaixar desse jeito, bem desse jeitinho.

Espero continuar o que mamãe começou quando tinha a minha idades. Quero lutar por um Brasil melhor, mais feliz e mais justo pra todos. Lutar por um Brasil livre de injustiças, onde todos tenham vez.

Só acho que estou, na verdade, fazendo tudo que ela queria que eu fizesse. Sendo livre! Livre e feliz, como ela já foi um dia e lutou para que eu fosse agora.

Espero que ela saiba de alguma forma que dei o meu melhor. Que tentei ser feliz como ela sempre quis que eu fosse.

- Ana Sofia Corrêa

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