A sala estava em silêncio total, como é de costume quando estou aqui dentro. Nem o barulho dos agitados, e sempre cheios de gente, corredores passam pelas grossas paredes e pela grossa porta de metal - mas se eu me concentrar o suficiente, poderia ouvir as vozes de todas as pessoas que estão neste prédio.
- O que você vê ao seu redor? - a voz robótica quebra o silêncio repentinamente. - Casas, prédios, fazendas, o mar?
É difícil conseguir focar o olhar através das grossas paredes, que possuem traços de chumbo em alguns pontos - o que foi feito especificamente por minha causa, para me levar ao limite -, ao meu redor. Mas mesmo com a dificuldade das grossas paredes e do traço de chumbo nelas, consigo focar a minha visão para além delas e para além dos corredores que rodeiam essa sala.
- Agora, feche os olhos. O que você vê?
Mesmo após fechar os olhos, ainda posso ver a mesma imagem que eu via antes quando olhava através das paredes.
Isso é ainda muito novo para mim, conseguir ver, mesmo com meus olhos fechados, tudo nitidamente e em cores. É como se minhas pálpebras não estivessem entre os meus olhos e o mundo exterior.
- Consegue através de suas pálpebras, visualizar o que está ao nosso redor?
Sim, consigo, e é como se não tivesse barreira alguma entre os meus olhos e todo o resto.
- Abra os olhos novamente - faço o que a voz diz. - Ouça tudo o que está no ar, porque o que você não consegue ver, irá conseguir ouvir.
Expando minha audição para além da sala, para além das grossas paredes, para além dos agitados corredores, para além de Arkadia.
- O que você ouve? Buzinas, trens, pessoas, animais?
Consigo ouvir tudo isso e muito mais.
- Esqueça a maioria desses barulhos e foque em apenas um. Concentre-se o máximo que puder para ouvi-lo claramente e ouvir apenas ele.
Respirei fundo e expandi minha audição para mais longe, me concentrando em um único som. É um pouco difícil fazer isso quando se pode até ouvir um alfinete caindo no chão lá do outro lado do planeta. Mas mesmo assim consegui focar minha audição em um único barulho.
- Ótimo você conseguiu, pássaros são uma boa escolha, mas que pássaros são esses?
- São gaivotas voando sobre o oceano - respondo à voz robótica que sai pelos alto-falantes espalhados pela sala. - Não é o som mais agradável para mim - um pequeno riso escapa por meus lábios.
É ainda tão estranho falar com uma máquina - que foi construída especialmente para ajudar a todos nós -, mas se fosse uma pessoa de carne e osso no lugar da máquina, eu me distraíria facilmente com a pulsação do sangue, com os batimentos cardíacos e até mesmo com a respiração dela - culpo minha ótima audição pelos momentos de distração.
- Se você não gosta de gaivotas, mude de animal, ou procure outra coisa para ouvir e se concentre nela.
Novamente obedecendo a voz robótica, porém feminina e muito autoritária, me concentrei em apenas uma única coisa para ouvir.
A voz robótica não disse que era para fechar os olhos, mas eu fiz mesmo assim - é mais fácil concentrar minha audição desse jeito.
Meus ouvidos são "bombardeados", mais uma vez, com todos os sons possíveis: cães latindo, gatos miando, pneus de automóveis nos asfaltos ou nas estradas, o canto de baleias no fundo do mar, pessoas gritando ou chorando ou fazendo orações no nome dele ainda.
Fui perdendo a concentração aos poucos.
Nunca vou conseguir ser, nem metade, quem um dia ele foi.
Eu ouço todos os dias pessoas pedindo, implorando, pela volta dele, do salvador que há muitos anos salvou toda a humanidade, duas vezes. Mas ele jamais voltará.
Ele morreu para salvar esse planeta de uma atrocidade, de um monstro que só mesmo uma mente insana conseguiria criar.
- Seus batimentos estão desconexos, o que significa que você perdeu a concentração - constatou Jill, a máquina dona da voz robótica.
Não me diga, gênio.
Levanto da cadeira, que é um dos únicos móveis dentro da sala de Treinamento Virtual. Bom, com os outros é virtual, para mim é apenas uma sala onde tem uma voz robótica que me diz o que é para fazer.
Passo a mão pelo comprimento do meu cabelo, suspirando de cansaço - não cansaço físico, porque isso é quase que impossível para alguém como eu, mas cansaço mental - e falo:
- Chega por hoje, Jill.
São horas e horas dentro desta sala fechada, e apesar de que eu não me canso tão fácil, também preciso de uma pausa de vez em quando.
Chego até aporta e espero ela se abrir.
Quando a porta se abre e eu passo por ela, todas as pessoas que estão no corredor param e olham para mim. Os olhos de todos caem sobre mim como se uma segunda cabeça tivesse nascido em meu pescoço - tudo bem, talvez eu tenha exagerado um pouquinho só nessa última parte.
Com os olhos de todos eles sobre mim, tudo o que eu queria dizer era que: 'Eu não sou ele'. Quem sabe se eu dissesse isso, eles parariam de me olhar dessa forma estranha.
Mas os únicos olhos que importam para mim são talvez os únicos que me entendem e que compreendem o que se passa dentro de mim. E, apesar de muitas vezes ela estar viajando mundo à fora por causa de seu trabalho, ela me conhece como ninguém.
Olho diretamente nos olhos azuis dela e vejo, realmente, a compreensão escrita neles.
Ela abre os braços e sem perder tempo, me encaixo entre eles me sentindo, nem que seja por um breve momento, normal.
Tudo parece desaparecer quando estou aqui nos braços da mulher mais importante do mundo, do meu mundo.
- Eu não vou conseguir - falo sobre o cabelo ruivo dela. - Não sou como ele e nunca vou conseguir ser, mãe.
A pressão sobre os meus ombros é devastadora. Todos eles estão colocando suas esperanças, seu futuro, nos ombros frágeis de uma única garota, que no caso sou eu. Eu tenho medo de decepcioná-los, de quebrar a tenra confiança que eles ainda tem sobre todos nós.
Ela me afasta de seus braços e me faz olhá-la nos olhos, pegou o meu rosto entre suas mãos então fiquei sem saída. Lois gosta de manter contato visual comigo, ela costuma dizer que meus olhos transmitem tudo o que sinto.
- Você acha que seu pai gostaria de ouvir que a filha dele não quer ser como ele?
Não é que eu não queira ser como ele um dia foi, simplesmente não tenho outras opções sem ser essa. Não posso escolher ser outra pessoa se eu nasci assim.
Em Arkadia, eles dizem que o mundo depende de nós. Que somos a garantia para que todos tenham um futuro seguro e garantido.
- Como eu vou saber? - minha voz saiu fraca. - Ele morreu antes de saber que eu existia - é como se eu não conseguisse fazer as palavras saírem por meus lábios, sem fazer um esforço grande.
Lois acaricia minhas bochechas com a ponta de seus dedos e isso parece me acalmar.
- Ele ficaria orgulhoso de ver a garota forte que você se tornou - sorriu, porém eu não retribui o sorriso, o que fez ela franzir as sobrancelhas. - Eu tenho muito orgulho por ter uma filha como você, Lara. Você é a melhor filha que uma mãe e um pai poderiam ter - trouxe minha cabeça para baixo e beijou a minha testa. - Você é uma garota absolutamente incrível, nunca se esqueça disso.

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S De Esperança
Fiksi Penggemar- Mesmo tendo toda a velocidade do mundo, você não vai conseguir salvar todos eles. - Mas eu posso tentar. (Esse livro só foi publicado no Wattpad por mim, Sweetiescape. Se está lendo ele em algum outro lugar, certamente não fui eu que publiquei.)