DIA 162
Eu definitivamente sou melhor nessa vida.
Nada de jogos mentais com garotas populares e atletas do terceiro ano. Nada de falsificar o boletim para não mostrar as três notas vermelhas em álgebra, química e educação física. Nada de corredores cheios de gente insípida e falsa fingindo viver. Fingindo ser legal. Fingindo ser inteligente. Fingindo não ser virgem. Fingindo sobre tudo, afinal.
Não, não sinto falta dos corredores do colégio nem da hierarquia opressora do ensino médio - e por que eu sentiria? Estava na base.
Sinto falta, porém, do Jonas e do Lucas. Aqueles nerds malditos e seus malditos assuntos inúteis. Mas não era o assunto que me irritava, era a importância absurda que eles impostavam nas vozes graves da puberdade tardia.
— Todo mundo sabe que o Flash é o melhor, o Batman é só um homem rico vestindo preto.
E essa discursão repetia-se quase que diariamente, e no fim eles acabavam num estranho empate. Sim, deles eu sinto falta.
Ah, também têm os meus pais e a Meg. A Meg... Ainda não estou pronta para falar dela. E sobre os meus pais, não há tanto para se falar. Eles morreram - como quase todo mundo - e antes disso faziam coisas que pais fazem. Como não brigar na presença das crianças, fazer cachorro quente para os amigos quando iam me visitar ou deixar o ponto do churrasco passar aos domingos. E eles também eram ótimos em constranger filhas adolescentes na presença de pretensos namorados. Nossa. Coisas como "o que você quer com a minha filha?" ou "seus pais sabem onde você está?" eram emitidas com tanta naturalidade que eu ficava vermelha duas vezes. Uma por ser constrangedor, outra por soar tão naturalmente que era constrangedor ficar constrangida. Ainda assim, eu amava meus pais, ainda amo, se é que isso é válido. Mas ouvi por aí que o amor para um objeto ausente machuca. Estavam certos, machuca muito.
No quinto mês depois de tudo eu já tinha uma rotina - o que era bom dado o quão imprevisível as coisas poderiam ser - e ela se baseava em uma lista, ou um manual de sobrevivência - como queira chamar. No topo do manual estava a seguinte frase:
Não desista hoje, talvez amanhã.
É um paradoxo muito útil quando o seu primeiro desejo do dia é desistir. A segunda frase é:
Água nunca é demais.
É o tipo de aviso que me deixa em alerta sobre a falta de vontade de estocar água no que eu chamo de lar. E o que eu chamo de lar é um apartamento no térreo de um prédio chique que eu jamais conseguiria pagar.
As próximas frases são coisas como "PROTEÍNA HOJE, PROTEÍNA AMANHÃ, PROTEÍNA PARA SEMPRE", afinal nunca se sabe em qual dia não encontrarei nem um matinho ou sei lá, um pé de alface. E tem o questionário para os humanos desconhecidos.
1- Quem você é? Não diga seu nome, sua antiga profissão, suas qualidades ou frases filosóficas.
2- O que aconteceu com você?
3- Você quer viver ou morrer?
Não é o tipo de pergunta com resposta certa, mas é sem dúvida o tipo de pergunta com resposta errada. E como ando armada, é muito perigoso errar nas respostas para essas perguntas.
Aos dezessete anos eu já conhecia tudo sobre todas as armas que conseguíamos roubar. Sinto falta de quando éramos nós e não eu sozinha, totalmente sozinha, completamente sozinha. E sinto falta do Mike que me ensinou tudo que foi necessário para me manter viva até hoje. E sinto muito por não ter sido forte o bastante para retribuir o favor.
Às vezes me pergunto por que insisto em sobreviver ao invés de aceitar que não tenho pelo que viver, então, como o papel ordena antes de tudo, deixo para desistir amanhã.
Epidemias são sempre uma droga, mas antes fosse a peste bubônica, a varíola ou a malária. Não que essas tenham sido gentis, mas sobrevivemos. Eu não diria que sobrevivemos ao que chamamos de A Epidemia, para os mais cultos, H6N3. Até onde eu sei, só eu restei. E dos sete bilhões que havia, em porcentagem, estou tão perto de zero que é quase como se eu não existisse.
DIA 174
Eu estava errada. Não estava sozinha. Não estava mesmo sozinha. Havia outro, eu só não sabia se ele me mataria ou eu o mataria primeiro.
Obrigada pelo seu voto! Ele é muito importante para mim.
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H6N3
Ficção Científica"Epidemias são sempre uma droga, mas antes fosse a peste bubônica, a varíola ou a malária. Não que essas tenham sido gentis, mas sobrevivemos. Eu não diria que sobrevivemos ao que chamamos de A Epidemia, para os mais cultos, H6N3. Até onde eu sei, s...