Mortes II

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A perda de Meg foi para mim uma das mais dolorosas. Talvez porque tenha sido desesperador assistir e não poder ajudar. Talvez por ela ter apenas doze anos. Talvez porque eu quase não a suportava. Afinal, Meg fazia tudo que boas irmãs caçulas não deveriam fazer. Dedurava para os meus pais tudo que ouvia sobre os garotos ou qualquer coisa suspeita. Gastava meus esmaltes e nunca confessava o crime. Fazia os nossos pais me obrigar a levá-la ao shopping. E consumia toda a minha paciência com sua inteligência incomum e irritante.

Quando ela morreu tudo que eu mais desejei foi a chance de poder levá-la para um passeio, pedir desculpas por não ter sido paciente e cuidar dela só por mais um dia, como eu nunca havia feito. E isso doía.

No fundo, algo dizia que o correto a fazer quando eu a visse seria sair do meu choque e abraçá-la longamente. Mas o sexto sentido apitava para que eu mantivesse o fuzil a ponto de bala e me preocupasse com cada movimento dado.

O fuzil me dava demasiada segurança. Mas eu sabia que jamais atiraria em qualquer pessoa dentro daquele laboratório. E sabia que nada havia me preparado para o encontro que estava prestes a acontecer. Olhei para a porta branca e li a plaquinha com letras azuis. Só para ganhar tempo, fôlego e força.

A última vez que estive em um hospital como esse com um laboratório como esse foi quando acompanhei meu pai na sua pesquisa sobre o vírus. Foi assim que descobri que o H6N3 era diferente de tudo que um virologista já havia visto. Meu pai era um. E ficou fascinado com o potencial dele.

— É tão complexo. O maldito fabrica as próprias proteínas e o seu genoma, minha nossa, milhares de pares de bases — ele dizia enquanto analisava seu trabalho. Parecia um lunático, mas um lunático com potencial para nos salvar. — Eu vou ficar aqui, não posso sair agora. Pegue Meg na escola e vá para a casa. Use a máscara — meu pai comandou e buscou a chave do carro no bolso do jaleco. Não desviou os olhos do microscópio para jogar a chave para mim.

Usei a máscara e fiquei me sentindo tremendamente patética por andar com aquilo no nariz. Em contra partida, estava me sentindo uma deusa por estar dirigindo o carro do meu pai, então meio que equilibrava as coisas.

Esperei na saída da escola enquanto ouvia Alice in Chains no toca CD. O fluxo massivo na frente da escola no horário de saída não existia mais. Provavelmente a maioria das pessoas estava se escondendo nas suas próprias casas e estocando comida ou viajando ilegalmente para os lugares mais isolados, altos e gelados do mundo. O boato era de que no Alaska quase não houve mortes. Deveriam suspeitar que fosse porque não havia muita gente lá para morrer. Os números cresceram depois do fluxo migratório.

Meg correu em direção à picape, sem a máscara idiota, e saltou no banco com a cara emburrada.

— Porque está sem a máscara? — perguntei, antes de ligar o carro. Ela não respondeu, virou o rosto para a janela e bufou.

Desliguei o carro e a olhei. Irritada demais para obrigá-la a tentar sobreviver ao vírus.

— Eu quero ir para casa — ela disse, baixinho e sem afronta.

— Riram de você? — perguntei. Tendo certeza de que a resposta seria sim, afinal era uma máscara de oxigênio realmente feia. Mas preferível quando a outra opção era morrer.

— Também — ela disse, tristonha.

— Presta atenção, eu sei que eu estou ridícula com essa coisa, assim como você ficará ridícula quando colocar a sua. Mas a grande questão é que seremos pessoas ridículas que sobreviverão até acharem uma cura ou vacina, sempre acham. Então tudo que precisamos fazer é esperar tudo ficar bem. Você pode fazer isso? — falei, com aquele tom maduro e paciente que não sabia de onde havia tirado.

Meg buscou a máscara na sua mochila e colocou no rosto. Mas já era tarde demais para o seu organismo.

No dia seguinte ela reclamou de sentir uma dor de cabeça muito forte e todos nós entramos em pânico. Meu pai gritou com ela e a questionou sobre o uso da máscara. Ela mentiu e eu a incentivei. Meu pai ficou devastado e saiu do quarto de Meg em direção ao laboratório. Sei disso porque foi lá que encontraram o corpo dele com um furo de bala na testa.

Um dos policiais que ainda exerciam a função concluiu que foi suicídio. A minha mãe ficou tão transtornada que parou de se preocupar com a saúde de Meg, que passou de dores de cabeça para os sangramentos em duas noites. Eu parei de usar a máscara quando notei a minha temperatura alta demais. É claro que eu sabia que o sangue dela era a coisa mais infectada do mundo, e ainda assim, entrei em contato com ele.

— Você precisa sobreviver — eu dizia para Meg a noite enquanto ela dormia. Mas não tinha certeza se sobreviver era algo bom dado o rumo que o mundo estava tomando. Certa noite, eu confessei meus pensamentos para ela.

— Se quiser desistir, eu não vou ficar com raiva. Eu estava errada quando disse que tudo ficaria bem. A verdade não é essa e agora sabemos disso. A mamãe nunca sai do quarto. O papai se matou. Eu estou sentindo dores no corpo todo e você não pode ficar nesse mundo completamente sozinha. Não é certo. Existem tantas coisas assustadoras lá fora, talvez seja melhor que você parta. Enfrentar essa loucura será muito difícil.

Meg acordou no dia seguinte gritando. Eu, dobrada na poltrona ao lado da cama, acordei assustada.

— A minha cabeça, está doendo, está doendo muito — ela dizia, aos prantos.

Fiquei tão desesperada que tive vontade de gritar também. Em vez disso, fui ao quarto da minha mãe, onde ela ficava por todo o dia desde o suicídio do meu pai. Não bati na porta, apenas entrei, num arroubo.

O cheiro me atingiu com toda a força. E foi ali que despertei os meus sentidos. Com o cheiro de morte proveniente da minha mãe. Ela devia, pelo cheiro, ter morrido na noite do dia anterior. Pois à tarde, quando coloquei o sanduiche de atum no criado mudo, ela ainda estava viva. Acho que o vírus é ainda mais letal quando se deseja morrer, afinal, se você não lutar contra o vírus, quem lutará? A ânsia de vômito surgiu quando pensei em entrar naquele quarto. Não entrei. Os gritos lamuriosos de Meg não me deram o tempo necessário para olhar de perto o corpo da minha mãe uma última vez.

— A minha cabeça vai explodir — Meg disse. Suas mãos na cabeça, que se mexia para todos os lados. — Faz isso parar.

— Eu não sei, eu não sei — disse, a segurando nos ombros. — Eu só quero que isso acabe — completei, me referindo aos sons todos que invadiram a minha mente, a imagem da minha mãe morta, ao cheiro do corpo começando a se decompor e a visão de Meg se contorcendo de dor. — Seria melhor se todos nós morrêssemos — pensei alto.

Tudo que ouvi depois disso foram os gritos de Meg enquanto sua cabeça crescia assustadoramente. A coisa mais assustadora que já havia visto de tão perto. O grito intenso nos meus ouvidos. Um "A" infinito e alto.

Eu queria fazer aquilo parar de crescer. Mas tudo que eu podia fazer era ficar ali, parada. Assistindo e me tremendo. Sentindo que a dor não poderia ser maior. Sentindo que eu não poderia suportar a morte de todos. Sentindo tudo se rasgando. Corroendo cada centímetro da minha alma até só restar pó. E enfim, explodiu. A cabeça de Meg explodiu e o seu corpo pequeno caiu no chão. E tudo que eu senti depois disso foi alívio por ter parado de ouvir os seus gritos.

Saí daquela casa e jamais voltei.

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