A Coisa

142 18 7
                                    

A pilha do meu relógio de pulso acabara há muitos dias. E eu realmente havia procurado outras para substituir, mas eu nunca pensei que isso seria tão difícil. Eu não aprendi a analisar o tempo através da lua ou das estrelas. Tudo que sabia sobre isso era que o sol nasce no leste e se põe no oeste, e talvez nem isso esteja tão correto assim. Portanto, passamos pela rua Genesee em direção a Columbian Way em algum momento depois do sol se pôr e antes do sol raiar. Andamos por mais mil ruas durante toda a noite e quem sabe, madrugada. Parando às vezes para invadir qualquer lugar que apresentasse uma chance, mesmo que remota, de guardar comida. Racionamos as barrinhas tanto quanto podíamos, mas Rad era um ser humano faminto e inconsequente, e não obedecia as regras claras sobre dar uma mordida a cada duzentos e cinquenta passos.

— Eu sou rápido, Emi. Quero dizer, eu sou todo rápido. Então o meu corpo usa energia mais rapidamente. O que é uma mordida perto de tudo que estou gastando nessa caminhada? — ele repetia isso a cada reclamação minha.

Talvez se não falasse tanto, poupasse mais energia. E afinal, eu não havia o obrigado a sair daquela casa pequena e suja para me seguir até um confortável quarto de hotel.

Fiquei em silêncio por mais da metade do caminho. Primeiro porque se eu começasse a falar com o tagarela, nunca mais ouviria nada além da voz rouca dele. E depois porque o silêncio era exatamente o que eu queria ouvir, caso isso mudasse, significaria que alguém ou algo estava se aproximando, e eu não queria ter que lidar com imprevistos naquela noite.

— Shii — alertei, parando no lugar onde eu estava.

— O que houve? Ouviu alguma coisa? — perguntou Rad, achando que sussurrar seria o bastante.

Arregalei os olhos e coloquei o dedo indicador nos lábios, sem emitir sons. Fiz sinal para que ficasse onde estava, levantando a palma da mão na altura do ombro.

O som que eu ouvia era muito semelhante ao de folhas se mexendo e passos no solo úmido. Eu só não afirmaria com certeza porque até onde eu podia ver, não havia nada parecido com florestas, e eu podia ver até muito longe. Tentei ver mais longe, olhando para todos os lados, evitando qualquer movimento brusco ou barulho. O coração pulando, os olhos caçando. O som cada vez mais perto.

E lá estava A Coisa. Num bosque tão distante que eu jamais achei que alcançaria. Eu conseguia ver pelos, garras e até as pegadas sendo deixadas para trás.

— O que é isso? — perguntei para mim, mas Rad ouviu.

— Isso o quê? O que você está vendo? — ele inquiriu, em pânico.

Disse que parecia um macaco, mas não era. Mas disse em libras. E ele colocou as palmas das mãos estendidas para os lados e fez que não com a cabeça. Claramente ele não havia me entendido.

— Parece um macaco, mas não é — olhei para ele, irritada. — Está longe, só precisamos andar mais rápido e não fazer nada que atraia essa coisa.

Tentei dar mais uma olhada, encarando fixamente a direção onde a vi pela última vez. Aproximando mais e mais, até descobrir que não estava mais lá. Concentrei-me na audição. O zumbido silencioso se espalhando até não se espalhar mais. E de novo, encontrei.

Muito perto.

— Corre, vamos! — eu disse para Rad, inocentemente. — Espera.

Rad não estava mais ao meu lado, assustado. Segurei o fuzil o mais estavelmente que podia. Girando como uma bailarina quebrada. As ruas cinzentas e opacas ficando cada vez mais turvas. E eu só conseguia pensar que eu morreria a qualquer momento e a droga do Rad havia me deixado.

Quando consegui me acalmar o suficiente para ouvir os sons, havia ao longe a respiração ofegante de Rad e muito mais perto um ronco abafado. Eu não queria matar. Não é o tipo de desejo que alguém tem aos dezessete anos, - ao menos não deveria - mas eu queria sobreviver, e faria o que fosse preciso.

Perto. Muito perto. Senti.

A Coisa peluda e grotesca se aproximou, finalmente. Havia uns vinte metros entre a gente, ela apenas surgiu ali.

Você é uma sobrevivente, não uma assassina. Sobreviventes não atiram primeiro. Repeti na minha mente enquanto a coisa andava em minha direção lentamente, considerando o que eu sabia que ela era capaz. Mas rápido demais para que eu tivesse tempo de pensar.

— Você consegue me entender? — perguntei. Alto. Embora eu soubesse que ela ouviria minha voz ainda que eu sussurrasse.

Talvez ela só parecesse algo ruim e na verdade guardasse dentro de si uma garota confusa e perdida aos dez anos. Esse era o problema com a mutação. Ninguém sabe direito até onde ela nos transforma. E é difícil saber quem somos quando algo muda tanto e tão repentinamente.

A mão da Coisa fez sinal de sim.

Eu não podia acreditar. A Coisa me entendia? A Coisa sabia libras?

— Quem você é? — suas mãos disseram. — Não diga o seu nome, sua antiga profissão, suas qualidades ou frases filosóficas.

Eu nunca havia reparado o quão difícil era responder a essa pergunta. Se não sou Emily ou Five, se não sou uma estudante ou babá integral de Meg, se não sou uma garota inteligente e divertida ou o caos que dá a luz a uma estrela cintilante, quem sou eu?

— Não sei — respondi. Sendo tão sincera e previsível quanto possível.

Eu provavelmente não confiaria em quem não se conhece. Tecnicamente, quem não sabe dos seus próprios demônios não consegue controlá-los.

— O que aconteceu com você? — perguntou. Suas mãos moviam-se devagar enquanto se aproximava cada vez mais.

Mike não pensou que precisaria responder essas perguntas quando as criou. Se pensasse, teria feito questionamentos mais simples.

— Eu perdi a equipe F, reencontrei um membro da equipe C, perdi um membro da equipe C e acho que encontrei um membro de alguma outra equipe — suspirei.

— B, — a mão larga e peluda mostrou — e não houve outras equipes.

Eu estava prestes a dizer tudo que eu sabia, então o tiro foi mais alto e mais rápido que os meus próprios pensamentos. Um segundo depois, lá estava A Fera, com sua mão na barriga, de joelhos, olhando para mim com olhos lacrimejantes. Seus pelos crispados sob a luz de um céu cinza. O dia prestes a amanhecer. Atrás dela, Rad, e na mão dele, uma arma.

H6N3Onde histórias criam vida. Descubra agora