O atentado

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As coisas não poderiam estar mais claras. Apesar de parecer uma grande confusão, há um fundo lógico. O que faz as coisas serem claras é a ideologia por trás da ação. Sim. Porque se Mike sempre acreditou que voltamos ao darwinismo, cada ação dele teve seu fundo muito bem arquitetado. E no fim, o atentado era o que separava os fracos dos fortes. Os que se adaptam dos que não se adaptam. Os mortos dos sobreviventes. Os fiéis dos traidores.

Eu estive errada todo esse tempo ao achar que fui fraca por não ter arriscado a minha própria pele para salvar Mike e os outros. Para Mike, eu fiz o correto. E o correto é sobreviver. É por isso que estou aqui, hoje. Porque não me arrisquei para salvar quem cuidou de mim.

Claramente, esse é o laboratório da vergonha. Onde só os egoístas, traidores e insensíveis podem entrar. E eu sou parte disso.

— Eu lamentei todos os dias por não ter voltado lá e tentado te salvar. Eu me culpei, me puni e me martirizei e você diz que eu fiz o que deveria ter feito? Quer que eu comemore por ter sido uma grande vadia?

— Você não foi uma grande vadia. Foi uma sobrevivente. Sabia da verdade sem que eu precisasse te dizer. Ignorou o lema do grupo porque a força que te move para frente não dá a mínima para os conceitos. Tudo que essa força quer é continuar te movendo para frente.

Todos me encaravam tão inexpressivos que eu duvidava, entre uma palavra e outra, que havia humanidade em qualquer um deles. Até Rad parecia concordar com tudo aquilo.

No dia do atentado, estávamos numa floresta, no acampamento 13; e um dos nossos "sensores" deu o alerta de aproximação. Com o passar dos minutos e o aumento da tensão, informações como: "é quente", "forma humana" surgiram. Tratava-se dos homens-chamas pouco certinhos. Tínhamos três desses do nosso lado, mas fogo contra fogo é inútil quando o assunto é batalha entre mutantes. Montaram o que, exageradamente falando, parecia um cerco. E queimaram os arredores do nosso acampamento. Ficamos ali, na segunda guerra fria, por quase uma semana. Racionamos comida até os conflitos internos começarem a esquentar. Mike perdeu o controle, pela primeira vez, e cada um começou a montar sua própria solução de fuga. Alguns tentaram fugir sozinhos e morreram queimados. Os que ficaram no acampamento esperaram pelo ataque, eu inclusive também esperei.

As noites eram horríveis, pois eu só me sentia segura de verdade quando era a minha vez de ficar de vigia. Não confiava em mais ninguém para me proteger além de mim mesma. Mais algum tempo se passou e toda a comida e água acabou. O que, é claro, nos deixou fracos, desunidos e vulneráveis. Exatamente do jeito que desejavam. E só então, fomos atacados. A pergunta que repetíamos todos os dias nas nossas mentes, e às vezes em voz alta, era: o que eles querem?

Antes que pudéssemos montar uma defesa digna, a resposta para a pergunta apareceu.

— Só queremos o Mike. Saiam todos e não voltem para salvá-lo ou fiquem e morram com ele — eles repetiam enquanto caminhavam, queimando tudo que tocavam e criando uma enorme fumaça, que logo, logo, atrairia todo o tipo de coisa.

A princípio, eu tive certeza de que morreria com Mike, por que no fundo, parecia valer a pena. Mas em algum momento entre os passos dos homens chamas e as palavras de Mike, eu percebi que eu só era responsável por uma vida.

— Não me devem nada. Vão. Sobrevivam e aguardem uma nova era — essas eram as palavras.

Sempre achei que a nova era se tratasse de um mundo melhor, com valores altruístas e pessoas especiais. No entanto, parece que a nova era trata-se de algo ruim e maléfico. Algo como uma raça de pessoas fortes e egoístas que controlarão pessoas frágeis e altruístas. E tudo que sei é que não quero ser controlada.

Um ou dois fugiram assim que tiveram a permissão. Ficaram menos de dez. Eu, Mike e Lis – minha melhor amiga do novo mundo – na mesma barraca. Carregamos as armas e penduramos todas que poderíamos pendurar nos ombros. A voz na minha mente dizendo que qualquer tiro contra as chamas seria puro desperdício de munição. Mas carregar as armas era melhor que abaixá-las e se entregar. Se eu fosse morrer, precisaria ser atirando na cabeça de quem me matou.

O cheiro cada vez mais próximo. A sensação térmica cada vez mais quente. A minha pele suada, pelo nervosismo ou pelas chamas, o que fosse. E então Mike segurou a minha mão e a de Lis e disse:

— Morreremos hoje, mas jamais nos renderemos.

E finalmente a ideia de morrer pareceu real, palpável, presente. E eu não queria morrer. E trair Mike e Lis ficou tão fácil quanto andar. Saí da barraca amarela com a desculpa de que iria pegar mais munição para o M14, o que uso desde então. E de fato peguei, mas guardei numa mochila e andei em direção aos homens-chamas com o fuzil levantado para o alto.

— Qual o seu nome? — um deles perguntou quando me avistou.

— Five — respondi. Esquecendo o que significava ganhar o nome, e sentindo todo o peso da traição ao lema.

— Não, esse não é mais o seu nome — respondeu, dando espaço para que eu partisse.

Corri infinitamente, deixando para trás todos da equipe e levando comigo armas roubadas, culpa e lemas que no fim, não honrei.

Aparentemente, eu não poderia sair do laboratório sem uma decisão. Seguir com Mike, Meg e Rad para uma vida totalmente nova e diferente de todos os princípios morais ou seguir sozinha e longe de todos que um dia amei e que, apesar de tudo, estão vivos. E seja lá qual fosse a minha decisão, eu precisaria mantê-la até o fim.

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