Vivos

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Confiança é o tipo de coisa que se constrói. Acredito nisso. E também acredito que em tempos como esse, é ainda mais difícil empilhar um ou dois tijolinhos de confiança. Antes, caso colocasse fé em alguém e essa pessoa não correspondesse, você levaria para a vida uma nova decepção. Hoje você morre. Por isso eu não confio em Mike, ou em Meg, nem mesmo em Rad – que parece bobo demais para trair alguém.

Entrei no laboratório e o cheiro era altamente aconchegante, se considerarmos toda a carniça em volta. Estava impecavelmente organizado – tanto quanto o meu apartamento no prédio W Seattle – sequer parecia fazer parte do mesmo universo. As cinco ou seis bancadas impecavelmente brancas. As pias inoxidáveis em cada uma delas. Os tubos de ensaios de vários tamanhos e o objeto desconhecido, grande, transparente e cilíndrico com água e Rad dentro. Ele parecia estar dormindo. Seu corpo flutuando no líquido. E sua respiração tão natural que eu jamais induziria que ele estava se afogando.

Mike sorriu para mim quando entrei. Meg apenas me encarou. Seus olhos claros e cabelos negros me fazendo prender o ar. Segurei o M14 com mais firmeza.

O silêncio mais longo e cruel em toda a minha vida. Ensurdecedor.

— Estávamos esperando você — Mike disse, me fazendo sentir angústia e alívio numa proporção quase idêntica. — Uma pena ela não ter sobrevivido. Obrigado por tentar. Ela era importante para mim, todos vocês são.

Fiquei em silêncio. Apenas porque a minha mente estava tão barulhenta e tumultuada que se eu começasse a falar, jamais pararia.

— Você deve ter muitas perguntas — Meg falou, andando para mim. Dei um passo para trás, instintivamente. — Tudo bem, eu não vou te machucar — sua voz era tão diferente do grito agudo que ouvi sair da sua garganta no nosso último encontro.

Mike nos olhava cautelosamente. Como quando membros do grupo entravam em discórdias. Achei que ele iniciaria um discurso sobre união, como fizera várias vezes, mas ele apenas se aproximou de Meg e tocou em seu ombro.

Ela olhou para ele e abaixou a cabeça, soltando o ar.

Parecia concordar com algo que ele havia dito, mas a minha audição não ouviu nada parecido com o timbre de Mike.

Antes que eu proferisse qualquer palavra, ou frase interrogativa, Rad chacoalhou seu corpo dentro do aquário assustador no fim do laboratório. E eu abaixei toda a minha guarda para vê-lo. Parecia tão desesperado.

— Tirem-no! — ordenei, apontando meu fuzil para o peito de Mike, torcendo para que ele acreditasse que eu o mataria.

Ele e Meg se entreolharam. Mike assentiu com um ínfimo e único balançar de cabeça, de cima para baixo. Meg andou e eu a segui com a mira, dando as costas para Mike.

— Você cresceu. Está mais... — ele disse — fria — completou.

Encarei seu rosto por cima do ombro. Sua barba intacta. Sua regata suja e rasgada intacta. Seu cabelo grisalho e curto intacto. Sua altura e largura intactas. Sua postura ereta intacta. Mas o seu olhar, não. Aquele não era mais o Mike.

— Você sobreviveu e ainda assim me deixou para morrer, — reclamei, sem emoção — frieza me ajudou a sobreviver.

— Exato. Você sobreviveu. Como eu sempre soube que sobreviveria — retrucou, com o ar arrogante que eu nunca havia ouvido em sua voz.

Tratei de ignorar Mike e as suas falsas verdadeiras intenções e foquei em Rad, que nesse momento tossia como um cão doente. Meg ao seu lado sussurrava baixinho coisas como: "a sua respiração fluirá naturalmente", "você se sentirá muito bem".

E lá estavam os palitinhos, me esperando para juntá-los. Aquele tom, aquelas induções. Meg era como Mike. Meg também possuía a hipnose sem transe. Meg era uma vadia.

— Na verdade, eu possuo mais que o poder de indução — Meg disse, voltando para mim. Destravei o fuzil. — Isso não vai te ajudar.

— Meg! — Mike repreendeu.

O que havia entre os dois parecia ir muito além do que o meu trabalho em juntar os palitinhos poderia ir. E tudo que eu queria era atirar na minha irmã e em Mike ou nunca ter entrado em toda essa loucura, para começar. Porque definitivamente eu não estava pronta para isso. Na verdade, eu não estava pronta para muito menos que isso. Eu não estava pronta para nada.

Meg parou onde estava e levantou os braços. Sua expressão dizia "Satisfeito? Não vou machucar a sua garotinha". Sua petulância era ainda maior do que quando roubava os meus esmaltes, mas dessa vez ela parecia mesmo poder bancar a ousadia.

— Emi, você veio — Rad disse, levantando. Suas roupas encharcadas. Eu quase podia sentir o peso delas no meu próprio corpo.

Olhei para ele, querendo muito gritar com o fato de ele ser tão... bobo. Alguém deveria avisar que estavam o afogando num tanque bizarro.

— Tudo bem, — eu disse, finalmente abaixando o fuzil — só precisamos sentar e conversar.

— Eu voto sim para sentar e conversar — Rad disse, é claro. O que ele estava achando que isso era? Uma democracia?

Acomodamo-nos onde era possível: nas cadeiras desconfortáveis do laboratório. Formamos um meio círculo muito nostálgico, academicamente falando.

— Eu começo — levantei o braço. Mas não sabia como seria difícil escolher apenas uma pergunta. — Meg, o que realmente aconteceu na noite em que você morreu?

— Essa eu posso responder — Mike disse, me fazendo querer gritar.

Aparentemente, quanto mais perto eu ficava da verdade, mas confusa ela ficava.

— Enquanto você dormia, pouco depois de decidir que eu deveria morrer, Mike, de alguma forma, me ouviu — Meg disse. Olhando para ele com uma ternura inédita.

— Ouviu? O que ele ouviu? — perguntei.

— A ouvi pedir para que tudo ficasse bem. Que você não perdesse as esperanças. Para que ambas sobrevivessem — Mike respondeu. Fazendo o caroço na minha garganta quase explodir.

— Foi o que ele fez. Ele cuidou da gente — Meg respondeu.

— Onde entra a parte da sua cabeça explodir na minha frente? — questionei, recuperando o fôlego.

— Isso? — Mike disse — isso fui eu.

— Por quê? — a medida que eu perguntava, sentia que não queria ouvir mais nada.

— Juntas, cedo ou tarde, morreriam. É preciso enfrentar esse mundo com as próprias pernas. Eu precisava de equipes. Nada de duplas dentro de uma equipe. Vocês mereciam a chance de descobrir o próprio potencial separadamente. Cada uma sobrevivendo por si só. E você precisava acreditar que aquele era o fim.

— Mike, era a minha irmã — senti a voz falhar.

— Era o meu filho — ele disse — o filho que eu amei com tudo — sua veia saltando, seus punhos serrados — o filho para o qual eu daria a minha vida um milhão de vezes. O filho que eu mantive vivo por todo o tempo que pude até finalmente perceber que ele era fraco e que eu não podia ser fraco para adiar sua inevitável morte.

Olhei para Meg. Seu cabelo no queixo. Agora com seus treze anos e alguns meses. E eu simplesmente não a reconhecia.

— Não seria justo se você morresse para me salvar — Meg ponderou — ou o contrário.

— Se você não consegue sobreviver sozinho, não merece sobreviver — Mike finalmente disse.

E mais uma vez, eram todos irreconhecíveis.

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