A centelha da verdade

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A primeira coisa que consegui enxergar foi a janela de madeira entreaberta permitindo a passagem de um feixe de luz, proveniente, muito provavelmente, da lua. Em seguida, alguém andando de um lado para o outro, o sobretudo o acompanhando. Grunhi um pouco ao tentar ver o meu próprio ferimento no ombro e isso o fez parar.

— Você acordou. Graças a Deus! — arrastou um banquinho para perto de mim e sentou ao lado do que parecia muito com um sofá, embora não fosse.

— Onde eu estou? — questionei, me esforçando para sentar. O desconforto no ombro me impedindo.

— Está na minha casa. Na minha antiga casa. Minha vez! — alertou. — Você disse algo sobre uma equipe F. Lembra? — acenei que sim, microscopicamente. — Não existiu nenhuma equipe F. Não com Mike no comando. Ele morreu. Morreu junto com a equipe C. Só eu sobrevivi — ele soava como alguém paciente tentando desfazer um equívoco.

— Isso é loucura — eu disse, impondo força para finalmente sentar e quem sabe, sair daquela caixa de concreto escura. Não tão escura para mim, pois a vela acesa na mesinha de canto era mais que o suficiente para eu enxergar a porta de saída.

— Você precisa falar sobre isso. Eu preciso saber — ele disse, apertando meu braço não machucado. Puxei o braço e o encarei. Suas mãos firmes segurando.

— Solta o meu braço — eu falei, palavra por palavra. Como bancaria aquela autoridade sem o meu M14? Pensei em seguida.

Ele soltou após uma bela olhada, uma das mais ameaçadoras que eu era capaz de dar.

— Desculpa. Eu só — balançou a sua cabeça para os lados, olhando para baixo — eu só preciso entender o que aconteceu, como alguém que está morto pode ter treinado você, construído uma nova equipe e ter morrido de novo.

Ao sentir o peso na sua voz foi que finalmente me atentei para as incoerências do que eu estava ouvindo. E para a verdade subliminar que havia ali. Mike ainda estava vivo.

— E se ele não tiver morrido? E se ele nos enganou? Nos fez pensar que sim. E se esse foi só mais um dos milhares de testes? — nos encaramos, tentando sincronizar sinapses e pensar cautelosamente.

— O Mike não faria isso, não comigo. Acho que eu significava algo para ele — ele disse, inseguro.

Eu também acreditava que o Mike seria incapaz de mentir para mim sobre algo como aquele atentado. Mas a essa altura, já não sabia até onde alguém era de confiança e imune a qualquer tipo de suspeita. Além disso, se houvesse outra explicação para a repetição de acontecimentos, eu estava disposta a ouvir, mas não conseguia pensar em mais nada.

— Talvez não o conhecesse tão bem quanto achou. Talvez o Mike não seja o cara legal que cuidou de você quando achou que era o fim.

Ele se levantou num salto do banquinho. Aparentemente, impaciente demais para manter seu corpo quieto. Voltou a andar de um lado para o outro.

— Como se chama? — perguntou, como se a resposta fosse uma peça no quebra cabeça dos seus pensamentos.

— Emi — é como me chamavam, na verdade o meu nome é Emily.

— Não. Quero dizer o seu nome de batismo, não o seu nome de nascimento, ou sei lá.

— Ah — o batismo se resumia a ganhar um nome todo especial após salvar a vida de um companheiro de equipe. Esse era o princípio fundamental do grupo. Salvar o próximo como a ti mesmo. — Five.

— Um número? Não parece muito especial — disse, parando com a caminhada para questionar essa bobagem de nomes.

— Mas era. Ele escolheu. E fala muito sobre mim. Você não entenderia.

— O meu era Rad — ele deu um sorriso com o canto da boca — significa rápido, astuto e desobediente. Por que Five?

— Por causa dos meus sentidos. Eu ouço, sinto e vejo coisas, — respondi, quase preocupada com os riscos de revelar habilidades para um estranho — coisas que as outras pessoas não conseguem.

— Precisa treinar. Deveria ter ouvido ou sentido eu me aproximar — ele andou para uma parte completamente sombria da sala — na conveniência, eu podia ter te matado — a voz dele não vinha de onde ele estava a um segundo atrás. Sua silhueta também não estava lá.

Girei o meu corpo para ele que estava atrás de mim no não - sofá e tentei acertá- lo com um soco, um soco patético de tão fraco. Ele segurou meu punho antes que eu tocasse-o na altura da barriga. Girou o meu braço e lá estava eu, gemendo de dor.

— Chega! — reclamei. Prestes a pedir pinico rosa. Que vexame. Ele me largou com um empurrãozinho.

Eu sentia raiva. Raiva por ter ficado tanto tempo longe de outros seres humanos que havia perdido quase toda a capacidade de usar minhas pequenas habilidades para ganhar uma luta corpo a corpo. Raiva por ter sido abandonada por Mike, a única pessoa desde toda essa tragédia que eu achei que estaria para mim, sempre. Raiva por não conseguir aperfeiçoar a minha visão o suficiente para ver coisas através de coisas e assim, achar o meu querido fuzil no meio da bagunça e sujeira dessa casa aparentemente inabitada. Raiva por tudo.

— O fuzil está ao lado do coldre, embaixo do pano preto — ele me avisou. — Achei que tivesse a visão de raio x.

— Como sabe que eu estava procurando... Você lê mentes? De verdade? — eu perguntei, parecendo boba.

Nunca havia conhecido nenhum telepata, mas não ficaria surpresa se eles existirem. Afinal, até onde eu sei, não devo me surpreender se um dia, andando pelas ruas fedorentas de Seattle, eu encontrar um porco de duas cabeças ou um homem flutuando numa cadeira de rodas.

— Não leio a mente, leio o corpo. Bom, a mente também, mas não do jeito invasivo. Eu basicamente consigo visualizar o que a outra pessoa está pensando dada a situação e as informações que tenho sobre ela — ele sentou ao meu lado, parecia querer estar confortável antes de dissertar sobre si mesmo — eu leio pessoas. Seus gestos. Sou como aqueles policiais que estudam essas coisas. Mas consigo saber mais do que "está mentindo" ou "está com medo". É, eu superei os caras. E faço essas coisas sem querer, praticamente. Eu apenas sei. Legal, né?

— É. Seria mais legal se tivéssemos um mundo de verdade para você exibir as suas habilidades — disse, antes de me arrastar até o pano preto ao lado do coldre.

— Você vai embora? — ele perguntou, levantando.

— Achou que passaríamos a morar juntos e dividir histórias de pós-apocalipse? Eu tenho um lar. Um lar muito melhor que isso e com ruas bem menos fedorentas. Esse lugar fede a defunto.

— Não é para menos. Foi aqui mesmo que eles morreram. Meus pais, meus irmãos, meus tios e meus primos.

Eu não senti pena, embora fosse triste perder toda a família. Mas eu não senti pena porque ninguém deve morar num cemitério fedorento quando há todos os prédios luxuosos de uma cidade a disposição. Nem aqueles que não sabem qual caminho seguir. Acho que esse era Rad. O cara que não sabia qual caminho seguir.

— A caminhada até o meu prédio é absurdamente longa. Trate de levar água e munição e se possível, algumas barrinhas de cereal porque estou faminta — recarreguei o fuzil e fui até a porta. O som do metal era reconfortante. Eu até podia sentir a madeira de nogueira com o meu tato super incrível.

A caminhada de um ponto ao outro por ruas desertas são quase sempre perigosas. E quando a caminhada acontece no escuro, tudo fica ainda pior. Mas eu jamais poderia prever aquilo.

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