O tiro

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As conveniências são o paraíso do novo mundo. Primeiro porque estão em postos de gasolina, e os postos estão por toda a parte, e segundo, porque elas têm quase tudo que alguém precisa em quase todas as situações. Fui até uma delas numa tarde nublada para fazer compras semanais e lá estava ele, bisbilhotando o meu estoque de água.

Eu estava com um fuzil apontado para o peito do maldito, e ele, como o esperado, com uma pistola destravada na minha cara.

— Quem você é? — dei início às formalidades. — Não diga o seu nome, sua antiga profissão, suas qualidades ou frases filosóficas.

— O que aconteceu com você? Você quer viver ou morrer? — ele respondeu, me fazendo quase vacilar. Recuperei o fôlego um segundo depois.

— Quem você é? — dessa vez eu estava realmente curiosa, além de apreensiva e assustada.

— Sou um sobrevivente e não vou atirar antes de você — respondeu ele, sério.

Uma gota de suor escorreu da minha testa para o meu queixo. Eu era mais sensível a sensações, mas não poderia descrever perfeitamente o peso daquela gota de suor escorrendo pelo rosto. E apesar do calor de um dia nublado estar todo contido naquele espaço fechado, o meu suor era por puro nervosismo.

— O que aconteceu com você? — depois da pergunta, repeti na minha mente: não abaixe a guarda, não abaixe a guarda, não abaixe a guar...

— Chega! — ele posicionou a arma a sua frente, levantou os braços e inclinou a cabeça para a direita. Não pensei muito antes de atirar tão perto do seu rosto que tive certeza de que ele sentira a morte sussurrar no seu ouvido.

— Não abaixe a guarda! — eu disse baixo e ferozmente.

Ele sorriu para mim. Seu cabelo era embaraçado e negro, balançou quando ele disse não com a cabeça. Um segundo depois, senti uma dor tremenda no ombro esquerdo. Filho da puta! Minha mente não teve tempo de conceber o quão rápido ele era. Rolei no chão para trás da prateleira mais próxima e transformei a dor em raiva, atirei na silhueta vestida de preto até não conseguir me mexer mais. Eu só tinha mais um pente reserva e parecia mesmo que eu ia morrer. Sentei – fadigada demais para fazer outra coisa – e soltei o meu peso na prateleira atrás de mim, para esperar o fim. Então o som metálico da arma escorregando no chão se aproximou, a sua pistola ao meu lado.

— Está carregada. Eu poderia usá-la em você, mas não atiro em quem não pode reagir. Não hoje.

— Quer apostar que posso reagir? — grunhi.

Soltei o fuzil e rasquei a bainha da blusa com os dentes. Puxei até ter um bom pedaço. Bom o suficiente para estancar o sangue do ombro. Suando frio, atirei sem ver para o último lugar que ele estava. Um segundo depois, lá estava ele na minha frente. Impossível. Eu deveria ter ouvido. Eu deveria... mas ele era tão rápido.

— Estou desarmado. O que Mike te ensinou, afinal? — ele disse corajosamente, em pé na minha frente.

— Vai logo. Pega a arma reserva e atira — eu disse, fechando os olhos.

Ouvi o som da arma sendo destravada e apertei meus olhos com mais força, quase morrendo antes do tiro.

— Não atiro em quem não pode reagir — a sua voz era quase como um sussurro vindo de outra dimensão.

— Você atirou no meu ombro — retruquei, quase gritando com toda a raiva pela dor. Malditos sentidos aumentados.

— Você tentou atirar na minha cabeça — respondeu, balançando a arma para o lado e me dando uma última chance de sobreviver.

Eu ri, com o máximo de escarnio que consegui imprimir.

— Eu não tento atirar na cabeça de alguém e erro. Que idiota!

— Eu ainda estou armado — ele ameaçou, agachando na minha frente e segurando a arma frouxamente. O cano inclinado para o meu joelho direito.

Respirei fundo e o encarei nos olhos. Através da penumbra os olhos negros revidaram o meu olhar.

— Mas não vai atirar. Porque se sente sozinho e está muito desesperado por uma companhia. O suficiente para correr o risco de morrer. Que idiota! — repeti, com mais lentidão e afronta que da última vez.

— Não projeta sua solidão em mim.

Ele pegou as duas armas dele e guardou no cinto. Caminhou até a parte clara daquela antiga conveniência e voltou com curativos improvisados e uma bolinha de borracha extremamente inadequada para o que eu previa que ele faria - a não ser que ele pretendesse tirar um chihuahua do sobretudo de couro. Olhei para a bolinha fixamente, tentando me comunicar sem deixar a voz esganiçada sair.

— É para você morder, vai precisar — ele explicou.

Quão humilhante isso precisa ser para mim?

— Prefiro conversar. Conversar ajuda.

— De quanto tempo estamos falando? Digo... A sua solidão — perguntou ele enquanto conferia o ferimento no meu ombro imóvel.

— O que aconteceu com você? — retomei o questionário, curiosa demais para evitar.

— Eu já passei no teste. Estou limpando o seu ferimento e provavelmente salvando a sua vida.

— O ferimento que você causou — rangi os dentes ao sentir a vodka no ombro — o que... aconteceu... com você?

— Não fui forte o suficiente para salvar o Mike, perdi todos da equipe C e não sei por que ainda não desisti — disse casualmente. — Na verdade, eu só posso fazer isso amanhã, desistir, quero dizer.

Com o braço direito apontei o fuzil para a barriga dele e torci para que ainda houvesse munição.

— Se afasta — comandei. Ele atendeu com um ar de exaustão. — Como você sabe dessas coisas? Você lê mentes? Você andou me vigiando? Fala! — berrei.

— Eu não sei do que você está falando — o tom dele era tão despreocupado que eu quase acreditei.

— Eu não fui forte o suficiente para salvar o Mike. Eu perdi a equipe F e eu só posso desistir amanhã — enfatizei cada eu tanto quanto possivelmente poderia enfatizar. — Então fala... O que você é e como sabe tudo isso?

Minha voz já estava falhando e o fuzil poderia ser facilmente roubado. Eu mal conseguia manter os meus olhos abertos, o que dirá o meu dedo no gatilho. Foi nesse momento ou cinco segundos depois que entrei em choque. Por algum tempo tive certeza de que não voltaria a abrir os olhos. E quando abri, desejei estar certa.

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