Reencontro

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Eu sempre fui indecisa. E embora eu não seja uma fiel seguidora de astrologia, meu signo é libra. E eu me segurava nesse fato para justificar para os outros a minha indecisão sobre qual carreira seguir, qual sapato usar nos bailes anuais, ou qual sorvete escolher: chocolate ou morango. E sobre o Subway, tudo que tenho a dizer é que cada funcionário que me atendeu deve ter me odiado por mais de um minuto e depois se odiado por não ter vencido na vida. Mas essas escolhas não são mais importantes, na verdade, nem existem mais. A única escolha que preciso fazer nesse novo mundo é sobreviver. E é uma decisão fácil, na maioria dos dias, porque é instintivo.

Arriscar a própria vida para salvar alguém não é instintivo.

Mas eu tive tempo para pensar nessa escolha. Longas, cáusticas e cansativas horas. A espécie morta na minha frente, cujo nome eu nunca saberei, me motivou a esperar por uma luz no fim do túnel. E a motivação veio do fato de eu não querer aceitar que perdi tanto tempo e energia num procedimento completamente inútil. Mas no fim, foi isso que aconteceu. Cada impulso para baixo, por mais fracos que alguns tenham sido, foram inúteis. O lado bom é que depois das eternas horas de exercício árduo, eu tinha a minha decisão.

A coisa com as decisões difíceis é que ambas as alternativas geram perdas. Se eu escolhesse voltar para o prédio W Seattle eu estaria perdendo Rad. Ele em si não é grande coisa. A coisa é não ter dito o que eu precisava dizer. Coisas como as minhas teorias sobre Mike estar reunindo membros de cada equipe para uma futura, poderosa e nova equipe. E sabe o sexto sentido? Ele existe. Sei disso por que como os outros, ele também melhorou. E o meu sexto sentido 2.0 diz que algo grande está prestes a acontecer, mas não posso descobrir o que é sozinha.

Mas é claro, temos a perda irremediável da minha vida. Porque seja lá o que tiver o impedido de voltar, poderia me impedir também. E eu não queria morrer tão jovem, tão sozinha, tão virgem. Não me parece o jeito certo de morrer. Era nesse tipo de egoísmo que Mike estava pensando quando criou o lema: salve o próximo como a ti mesmo. E Rad seguiu o lema, apesar de, é claro, eu não estar precisando ser salva. Ah, malditas decisões difíceis.

Existe outra coisa em que penso antes de escolher situações do tipo. Quem eu serei após cada decisão. Voltar para o lar e lamentar eternamente a minha covardia enquanto existo por mais três ou cinco anos até me suicidar, ou enfrentar o medo congelante dos hospitais e descobrir o que aconteceu com Rad, com Mike, com todos... Falando assim, parece tão óbvio.

Eu estava sentada embaixo de uma árvore na Rua Jefferson com a Broadway, e o hospital ficava a alguns quarteirões de distância. Uma caminhada curta e rápida se eu estivesse com pressa. Mas eu não estava, em vez disso, estava com medo. Como se nada em mim fosse forte o bastante para derrotar a menor ameaça daquele hospital. O medo é engraçado às vezes, por ser tão irracional. Eu deveria começar a supor que Rad não voltou porque encontrou uma máquina de salgadinhos ou uma nova colega para dividir o mundo. Embora soe improvável demais, é mais reconfortante que imaginar que um monstro que sobreviveu ao vírus tenha devorado parte do seu corpo e ele esteja agora deitado numa poça do próprio sangue.

Emily, você precisa parar.

Caminhei pela rua do hospital observando cada detalhe, ouvindo cada som, sentindo cada cheiro, e isso se resumia a carros enfileirados no canto das calçadas e no meio da rua Cherry, centenas de corpos espalhados em cada metro quadrado das calçadas dos dois prédios do hospital, o zumbido irritante e irremediável de moscas, batimentos cardíacos uniformes e carniça, podre o suficiente para fazer os meus olhos arderem, e ainda mais podre do que se pode imaginar graças ao calor solar. Respirar não é uma tarefa tão fácil nessas situações.

Tracei meu trajeto enfiando o coturno entre os corpos, tirando, e enfiando de novo. Sujando o meu cadarço de restos humanos, ou não tão humanos assim. Alguns corpos perderam a aparência humana. Crânios derretidos, peles escamosas, ossos com aparência borrachuda. Nada que eu gostaria de guardar na minha caixinha de lembranças mental.

Numa das múltiplas portas de vidro, deixei o fuzil preso à bandoleira e suspenso no meu corpo e com algum esforço abri a porta. E mais corpos surgiram. E pior ficava o cheiro, e mais altos eram os zumbidos. Mas não o suficiente para me impedir de ouvir passos.

Senti um enjoo. O suor molhando a blusa. Uma tontura tão forte que achei que desmaiaria entre os corpos decrépitos. Mas algo mais forte me fez seguir o som dos passos. Seja quem fosse, eu o encontraria.

Os sons vinham de diferentes lugares, mas provavelmente no mesmo andar. Havia três batimentos cardíacos. Um mais lento que os demais. Um parado e o outro andando. Andando em círculos. E o cheiro do que estava andando em círculos era familiar. Mas a carniça impregnada em cada molécula de oxigênio levava a lembrança do cheiro para longe. Tornando o cheiro uma ideia presente, mas tão distante que jamais alcançaria.

Meg.

Meus olhos encheram-se de lágrimas um milésimo de segundo depois. Meg está morta. Pensei, mais tentando me convencer do que qualquer outra coisa. Mas a certeza daquele cheiro era tão persistente que me fez vacilar. Talvez, de algum jeito, sua pequena cabecinha crescendo e explodindo não tenha sido o fim.

Andei mais um pouco. Tremendo. Ouvindo o batimento de quem estava sentado. O cheiro de pólvora, suor e graxa. Mike.

O batimento lento seria Rad? Eu deveria conseguir reconhecer o cheiro dele, mas havia algo que camuflava e me fazia duvidar. Havia água.





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