O problema epistemológico de uma teoria geral da ação humana

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Na nova ciência, tudo parecia problemático. Ela era uma intrusa no sistema
tradicional de conhecimento; as pessoas estavam perplexas e não sabiam como
classificá-la nem como designar o seu lugar. Por outro lado, estavam convencidas
de que a inclusão da economia no sistema de conhecimento não necessitava de
uma reorganização ou expansão do programa existente. Consideravam completos o
seu sistema de conhecimento. Se a economia não cabia nele, a falha só podia estar
no tratamento insatisfatório aplicado pelos economistas aos seus problemas.
Rejeitar os debates sobre a essência, o escopo e o caráter lógico da economia,
como se fossem apenas uma tergiversação escolástica de professores pedantes, é
prova de desconhecimento total do significado desses debates; é um equívoco
bastante comum supor que enquanto pessoas pedantes desperdiçavam seu tempo
em conversas inúteis acerca de qual seria o melhor método de investigação, a
economia em si mesma, indiferente a essas disputas fúteis, seguia tranquilamente
o seu caminho. No Methodenstreit3
,– entre os economistas austríacos e a Escola
Historicista Alemã – que se auto intitulava “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern” – bem como nas discussões entre a escola de John Bates Clark e o
Institucionalismo americano4 havia muito mais em jogo do que a simples questão
sobre qual seria o melhor procedimento.
A verdadeira questão consistia em definir os fundamentos epistemológicos da
ciência da ação humana e sua legitimação lógica. Partindo de um sistema
epistemológico para o qual o pensamento praxeológico era desconhecido e de uma
lógica que reconhecia como científica – além da lógica e da matemática – apenas a
história e as ciências naturais empíricas, muitos autores tentaram negar a
importância e a utilidade da teoria econômica. O historicismo pretendia substituí-la
por história econômica; o positivismo recomendava substituí-la por uma ilusória
ciência social que deveria adotar a estrutura lógica e a configuração da mecânica
newtoniana. Ambas as escolas concordavam numa rejeição radical de todas as
conquistas do pensamento econômico. Era impossível aos economistas
permanecerem calados em face de todos esses ataques.
O radicalismo dessa condenação generalizada da economia foi logo superado por
um niilismo ainda mais universal. Desde tempos imemoriais, os homens, ao pensar,
falar e agir consideraram a uniformidade e imutabilidade da mente humana como
um fato inquestionável. Toda investigação científica estava baseada nessa
hipótese. Nas discussões sobre o caráter epistemológico da economia, pela
primeira vez na história do homem, este postulado também foi negado. O
marxismo afirma que a forma de pensar de uma pessoa é determinada pela classe
a que pertence. Toda classe social tem sua lógica própria. O produto do
pensamento não pode ser nada além de um “disfarce ideológico” dos interesses
egoístas da classe de quem elabora o pensamento. A tarefa de uma “sociologia do
conhecimento” é desmascarar filosofias e teorias científicas e expor o seu vazio
“ideológico”. A economia é um expediente “burguês”; os economistas são
sicofantas do capital. Somente a sociedade sem classes da utopia socialista
substituirá as mentiras “ideológicas” pela verdade.
Este polilogismo, posteriormente, assumiu várias outras formas. O historicismo
afirma que a estrutura lógica da ação e do pensamento humano está sujeita a
mudanças no curso da evolução histórica. O polilogismo social atribui a cada raça
uma lógica própria. Finalmente, temos o irracionalismo sustentando que a razão
em si não é capaz de elucidar as forças irracionais que determinam o
comportamento humano.
Tais doutrinas vão muito além dos limites da economia. Elas questionam não
apenas a economia e a praxeologia, mas qualquer conhecimento humano e o
raciocínio em geral. Referem-se à matemática e à física, tanto quanto à economia.
Parece, portanto, que a tarefa de refutá-las não cabe a nenhum setor específico do
conhecimento, mas à epistemologia e à filosofia. Essa é, aparentemente, a
justificativa para a atitude daqueles economistas que tranquilamente continuam seus estudos sem se importar com problemas epistemológicos nem com as
objeções levantadas pelo polilogismo e pelo irracionalismo. Ao físico, pouco
importa se alguém estigmatiza suas teorias como burguesas, ocidentais ou judias;
da mesma maneira, o economista deveria ignorar a calúnia e a difamação. Deveria
deixar os cães latirem e não prestar atenção aos seus latidos. É conveniente que se
lembre do ditado de Spinoza: Sane sicut lux se ipsamet tenebras manifestat sic
veritas norma sui et falsi est5.
Entretanto, no que concerne à economia, a situação não é bem a mesma que em
relação à matemática e às ciências naturais. O polilogismo e o irracionalismo
atacam a praxeologia e a economia. Embora suas afirmações sejam feitas de
maneira geral, referindo-se a todos os ramos do conhecimento, na realidade visam
às ciências relativas à ação humana. Afirmam ser uma ilusão acreditar que a
pesquisa científica pode produzir resultados válidos para gente de todas as épocas,
raças e classes sociais, e se comprazem em depreciar certas teorias físicas e
biológicas como burguesas ou ocidentais. Mas, se a solução de questões práticas
necessita da aplicação dessas doutrinas estigmatizadas, esquecem sua
desaprovação. A tecnologia da União Soviética utiliza sem escrúpulos todos os
resultados da física, química e biologia burguesa. Os físicos e engenheiros nazistas
não desprezaram a utilização de teorias, descobertas e invenções das raças e
nações “inferiores”. O comportamento dos povos de todas as raças, religiões,
nações, grupos linguísticos ou classes sociais demonstra claramente que eles não
endossam as doutrinas do polilogismo e do irracionalismo no que concerne à
matemática, à lógica e às ciências naturais.
Mas, no que diz respeito à praxeologia e à economia, as coisas se passam de
maneira inteiramente diferente. O principal motivo do desenvolvimento das
doutrinas do polilogismo, historicismo e irracionalismo foi proporcionar uma
justificativa para desconsiderar os ensinamentos da economia na determinação de
políticas econômicas. Os socialistas, racistas, nacionalistas e estatistas fracassaram
nas suas tentativas de refutar as teorias dos economistas e demonstrar o acerto de
suas doutrinas espúrias. Foi precisamente essa frustração que os impeliu a negar
os princípios lógicos e epistemológicos sobre os quais se baseia o raciocínio
humano, tanto nas atividades cotidianas como na pesquisa científica.
Não é admissível desembaraçar-se dessas objeções meramente com bases nos
motivos políticos que as inspiraram. A nenhum cientista é permitido presumir de
antemão que a desaprovação de suas teorias deve ser infundada porque seus
críticos estão imbuídos de paixão ou preconceito partidário. Ele deve responder a
cada censura sem considerar seus motivos subjacentes ou sua origem. Não menos
admissível é silenciar em face de frequente opinião de que os teoremas de
economia são válidos apenas em condições hipotéticas que não se verificam na
vida real e que, portanto, são inúteis para a compreensão da realidade. É estranho
que algumas escolas aprovem esta opinião e, ao mesmo tempo, calmamente, desenhem suas curvas e formulem suas equações. Não se importam com o
significado do seu raciocínio e nem como este se relaciona com o mundo real da
vida e da ação.
Essa atitude é, sem dúvida, indefensável. O primeiro dever de qualquer
investigação científica é descrever exaustivamente e definir todas as condições e
suposições, com base nas quais pretende validar suas afirmações. É um erro
considerar a física como um modelo e um padrão para a pesquisa econômica. Mas
as pessoas comprometidas com esta falácia deviam ter aprendido pelo menos uma
coisa: nenhum físico jamais acreditou que o esclarecimento de algumas condições
e suposições de um teorema da física esteja fora do campo de interesse da
pesquisa da física. A questão central que a economia tem obrigação de responder é
sobre a relação entre suas afirmações e a realidade da ação humana, cuja
compreensão é o objeto dos estudos da economia.
Portanto, compete à economia examinar minuciosamente a afirmativa segundo a
qual seus ensinamentos são válidos apenas para o sistema capitalista, durante o
curto e já esvaecido período liberal da civilização ocidental. É dever da economia, e
de nenhum outro campo do saber, examinar todas as objeções levantadas de
diversos ângulos contra a utilidade das afirmativas da teoria econômica para a
elucidação dos problemas da ação humana. O sistema de pensamento econômico
deve ser construído de tal maneira que se mantenha a prova de qualquer crítica
por parte do irracionalismo, do historicismo, do panfisicalismo, do behaviorismo e
de todas as modalidades de polilogismo. É uma situação intolerável a de que os
economistas ignorem os argumentos que diariamente são promovidos para
demonstrar a futilidade e o absurdo dos esforços da economia.
Não se pode mais continuar lidando com os problemas econômicos da maneira
tradicional. É necessário construir a teoria cataláctica sobre a sólida fundação de
uma teoria geral da ação humana, a praxeologia. Este procedimento não apenas a
protegerá contra inúmeras críticas falaciosas, mas possibilitará o esclarecimento de
muitos problemas que até agora não foram adequadamente percebidos e, menos
ainda, satisfatoriamente resolvidos. Especialmente no que se refere ao problema
fundamental do cálculo econômico.

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora